LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A peça aos pedaços

            Foi – uma peça em pedaços, da companhia Vão, estreou quarta-feira passada num mirante de 360°, um cenário vivo de Fortaleza. Embora o espetáculo pudesse acontecer em diversos lugares, este escolhido (onde funcionava o antigo restaurante Platoh, na Torre Quixadá) adaptou-se de forma perfeita à proposta. Cada “pedaço”, fragmento ou esquete se passa numa fatia do ambiente, valorizando os elementos que a paisagem noturna oferece. A luz, o vento e o som do espaço externo entram em simbiose com a peça e colaboram para a atmosfera, inventando um tipo de  cumplicidade, uma conspiração positiva entre teatro e cidade.
            Jadeilson Feitosa, o único ator em cena, desdobra-se em histórias e caminhos abertos pelo texto e pela direção de Rafael Martins. A plateia transita de um local para outro – e tem suas emoções também deslocadas, conforme as alternâncias de humor ou melancolia expostas. No segundo “pedaço”, esse jogo alcança uma dimensão vertiginosa e desconcertante, própria para que se ponham em xeque questões referentes ao fazer teatral – e os espectadores, como parte integrante dessa cadeia, são envolvidos em dúvidas e manobras psíquicas. Nesse momento, o cenário  (na criação de Raíssa Starepravo) atinge grandeza simbólica: a mangueira de água funciona alternadamente como lanterna, microfone ou tubo de oxigênio, enquanto o ator se multiplica em personagens e enredos possíveis.
            No “pedaço três”, Jadeilson Feitosa alcança toda a sua extensão dramática, numa cena que não por acaso se apresenta literalmente suspensa. Um suporte metálico reproduz um novo mirante para o monólogo. O tema – uma relação de amor fracassada e conflituosa – lembra que tudo na vida passa por seu dilema, seu instante interrompido ou “pendurado”: uma fase de absurda solidão, ainda que se esteja diante do mundo, do formigueiro de luzes urbanas. As coisas ao final se reduzem à poeira, ao vento que carrega partículas do que quer que seja. A reflexão e a melodia, em tom de tristeza poética, remetem ao espetáculo anterior do grupo, o belíssimo En Passant.
            Mas Foi tem seus lances bem humorados, igualmente. As histórias de abertura e fechamento exploram essa tônica, embora não de forma idêntica. Na primeira, o riso talvez esteja mais na atuação que no enredo, abordando uma rotina (des)controlada em sua progressão de atos e objetos. No quarto “pedaço”, entretanto, o texto ganha um sabor de riso ancestral, com seus versos pícaros, suas situações de non sense, perfeitas para compor um retrato de facetas inconstantes. Esse retrato não é apenas o de um personagem, mas o de qualquer pessoa sujeita a desvios de destino, mudanças e escolhas imprevistas. Um modo criativo de selar o rodízio que a peça propôs – inclusive em termos físicos, já que durante a última cena o piso gira (de forma imperceptível, vale dizer).
Ao fim do espetáculo, todas as partes se juntam na dramaturgia: cada “pedaço” singular por sua ênfase, mas unido aos demais pela ligadura de tema ou estilo. Quem acompanha o trabalho desses talentosos artistas já sabe o que vai encontrar. Mas, dessa vez, por conta do espaço escolhido, ainda se acrescenta um horizonte mágico à experiência estética. 

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião do jornal O Povo. Está disponível também no portal http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/06/08/noticiaopiniaojornal,2254023/a-peca-aos-pedacos.shtml)


                                                                                                                                      

Um comentário:

  1. Olá! Conheci seu trabalho na coletânea "Contos Cruéis" e, desde então, pude acompanhar mais algumas de suas manifestações literárias. Parabéns, gosto muito!

    Meu nome é Bruno, sou jornalista, redator e roteirista. Nas horas vagas, também escrevo alguns contos e os publico no Portal Literal. Caso tenha interesse em conhecer meu trabalho, dê uma conferida: http://portalliteral.terra.com.br/banco/texto/vinte-e-dois-anos-depois-uma-piada-perde-a-graca

    Abraços e parabéns!

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