LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Vizinhos

“É dom de Deus não ter vizinhança”, dizia um personagem franciscano que certa vez conheci – e houve um tempo em que eu concordava. Porque experimentei alguns vizinhos medonhos, nos três condomínios em que já morei.

Podem dizer que sou irritadiça e melindrosa, mas o mínimo que exijo de meu lar é privacidade e silêncio. Não consigo, por exemplo, ignorar um desfile matutino de salto alto, com repercussão de martelada, sobre minha cabeça. Infelizmente – oh – há coisas muito piores! Como aquele morador (sempre no apartamento de cima) que arrastava mobília à meia-noite, ou tinha mania de jogar bila para que o cãozinho a perseguisse pela casa toda. Houve um que instalou uma banheira e trouxe como brinde várias infiltrações, propagadas pelo prédio inteiro... Também já amarguei muito sobressalto com vizinhas histéricas, que gostam de chamar os filhos com cada grito que nem mesmo Munch suportaria!

Existem os que cozinham pratos nauseabundos com aroma poderoso; os que instalam karaokê aos fins de semana; os que têm mania de pintar as paredes mensalmente, com tinta intoxicante. E os mais perigosos: os que não cumprimentam no elevador (são os mesmos que monopolizam o elevador, ou o empestam com colônia adocicada, ou arrancam os botões do painel para completar alguma secreta coleção).

Há os que praticam arremesso de embalagem pela janela, todas as manhãs. Imagino que fiquem bem satisfeitos ao encontrar, no pátio, o próprio lixo. Devem conferir os potinhos de iogurte e as caixas de suco com idêntico prazer ao de um bicho farejando a urina com que demarcou o território...

E há os sonâmbulos, que de madrugada assombram os corredores e buscam a vertigem das varandas. Os apressados, que cruzam a garagem com desespero e fúria. Os gatunos curiosos, que furtam extratos bancários da caixa postal. Os adolescentes mudos, que fazem planos pirotécnicos, ou as crianças ociosas, que meditam travessuras... Conheci cada um desses tipos temíveis, mas por sorte também encontrei pessoas discretas e amáveis.

Na minha atual vizinhança, existem fisionomias gentilmente familiares. De todos os que poderia citar, elejo um simpático senhor, que certo dia confessou gostar de minhas crônicas. Em viagens rápidas ao terceiro e sétimo andar, já compartilhamos o encanto pelos textos de Mia Couto e trocamos ideias sobre a multiplicação dos livros – milagre lento que um dia nos tomará todo o espaço de habitação.

Pois a ele, o tal Vizinho Exemplar, dedico as palavras de hoje. Afinal, dom de Deus – cada vez mais raro – é conseguir uma morada tranquila.



Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião do jornal O Povo de hoje. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/02/16/noticiaopiniaojornal,2102936/vizinhos.shtml)

6 comentários:

  1. Tércia, prestes a deixar com saudades esta morada à beira do amado rio Sèvres, em nossa Nantes, consola-me abandonar à falta de isolamento sonoro algumas vizinhas zoadentas, desde cedo de salto alto. Alegra-me que você e eu voltemos a ser vizinhos em Fortaleza. Ou quase. Beijos do amigo que tira o chapéu ao longo das linhas tuas, Henrique Beltrao

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  2. Existe uma solução para não ter vizinhos: morar numa ilha deserta enquanto o aquecimento global não permitir. Bom, talvez essa não seja uma possibilidade muito prática. Em relação aos livros é mais fácil: montar uma biblioteca em local próprio que não seja o seu apartamento. Ou comprar uma dessas geringonças eletrônicas que armazenam milhões de livros na forma de zeros e uns.

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  3. Adorei o final da crônica,em especial.
    Saudades,Tércia...de frequentar suas aulas e seus graciosos comentários.
    =**

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  4. Muito bom! Vizinho é um bicho estranho, mesmo. Esta tua crônica me inspirou a futuramente escrever algo a respeito das aventuras que acontecem aqui no meu prédio.. hehe
    Beijão

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  5. Vizinhos e seus dois lados da moeda; ora inoportunos e inadequados, ora atenciosos e prestativos. Saber reconhecê-los e aguentá-los é a maior das virtudes.
    Se tiver a curiosidade: www.medidadomundo.blogspot.com

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  6. Não existe "bom vizinho", uma hora ele vai te atropelar de alguma maneira. Eu moro num bairro Zona 1 - somente casas, árvores e passarinhos. Mas eis que um vizinho resolveu ser musico. Toca flauta, sax e clarinete, todos sem nenhum talento.
    Gostaria muito que vc e esse simpático vizinho viessem morar ao meu lado e que entre os andares passassem por meu quintal trazendo o encanto de Mia Couto.

    Belo texto Tércia!

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