Na escala de prazeres físicos, o sono sempre gozou de prestígio comigo. Lembro as raríssimas ocasiões de insônia como os verdadeiros pesadelos que jamais tive – porque no geral, durmo bem e com abundância.
Ao longo de tantos anos de prática, aprendi a conhecer os diversos tipos de sonolência e seus efeitos. O sono da noite, por exemplo, costuma ser contínuo, como uma longa travessia. Surge anunciado pelas pálpebras pesadas, um torpor (que alguns confundem com preguiça) e o irresistível desejo de se acomodar em determinada posição no leito, para que o sonho venha mais rapidamente. O cochilo da tarde, ao contrário, é breve e fortuito, não exige tanto silêncio para acontecer e pode “pegar” de surpresa.
O sono tem seus caprichos, a começar pelo ambiente. Claro que uma pessoa exausta pode dormir em qualquer local ou postura, à semelhança de alguém faminto, que talvez coma o que lhe surja no caminho. Mas o bom dormidor, aquele que pratica o sono regularmente, é parecido com um gourmet. Escolhe a temperatura do quarto, a penumbra ideal, o travesseiro na melhor espessura, assim como o outro seleciona os detalhes culinários. A delícia do sono passa pelos lençóis limpos e macios, pelo colchão confortável – tanto quanto o prazer da comida ultrapassa o seu sabor e está também na aparência do prato, no aroma e textura.
Quem estabelece uma relação afetiva com o sono não o enxerga como necessidade biológica ou perda de tempo. Lembro que certa vez acatei o argumento de um amigo que tentava me convencer a dormir de madrugada, dizendo que assim eu leria mais livros. Ora, nunca minha leitura foi tão infeliz e distraída! Dispenso sem problema festas ou compromissos em troca de livros – mas as horas de sono, não! Até porque dormir não é apenas desligar-se do mundo: os sonhos surgem como uma atração à parte.
Quando exercito a capacidade de recordar os sonhos, vejo o seu poder de ficção. Já “aproveitei” pelo menos três relatos sonhados, que se transformaram em contos. E quem dirá que esse modo de criar não é interessante? Jamais acreditei que, ao dormir, uma pessoa somente descansa; se o corpo relaxa, a mente produz, inventa e viaja. E são os mistérios (muito mais que as interpretações) que me fascinam, nos sonhos. As histórias que vêm enquanto durmo são “filmes exclusivos”, quer eu assista às cenas ou participe delas. Às vezes, tenho consciência de que estou sonhando, e me solto inteiramente ao surreal; em outros momentos, creio que tudo é realidade, vivo medos e estranhezas, desconfio de cenários – mas nem por isso a história fica menos curiosa.
Há muitos sonhos divertidos, que eu poderia contar. Entretanto, toda essa escrita me trouxe uns bocejos típicos... Chegou a hora de terminar.
Tércia Montenegro
Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/08/03/noticiaopiniaojornal,2275011/o-sono-e-seus-arredores.shtml
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