LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por um mundo de silêncio

Crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/11/23/noticiaopiniaojornal,2340372/por-um-mundo-de-silencio.shtml

POR UM MUNDO DE SILÊNCIO


            Já sabemos que a vida moderna é incrivelmente barulhenta. Mas como se não bastassem os ruídos de motor e as insistências de buzinas com os quais a maioria das pessoas se acostumou, a tecnologia parece alimentar novos e irritantes sons. São alarmes e guinchos enlouquecidos por garagens e estacionamentos, toques de celular nos estilos os mais absurdos (com músicas toscas, choro de bebê, hinos futebolísticos ou som de derrapagem de pneus), e o curioso é que os proprietários de tais máquinas nunca se constrangem por invadir, com suas explosões sonoras, o que antes era um pacífico silêncio.
            Ao contrário, soa “normal” que alguém se agite e produza ruídos como um frenético, e na falta (ou descanso fugidio) das máquinas, sente-se um desespero por falar, puxar conversa, tossir ou bater o pé, qualquer coisa que ultrapasse o hiato silencioso – sinal de angústia para muitos.
            Talvez os barulhentos considerem o silêncio um tipo de tristeza ou de morte; por isso, disfarçam, produzindo apitos, vozes ou cicios. Tudo vale para espantar o fantasma do vazio auditivo: banda de forró com refrão esganiçado, tv ligada o tempo inteiro, rádio na cozinha, mp3 durante o passeio, “som ambiente” em restaurantes e hotéis... Somos tão bombardeados sonoramente, que nem atentamos mais. Entretanto, mesmo que a percepção momentânea ignore o estresse, o corpo sofre.
            Biologicamente, devemos rejeitar ruídos metálicos, estridentes e artificiais. Não é possível que a pulsação cardíaca se mantenha estável, por exemplo, dentro de um carro em que há diversas sirenes (sensor de velocidade, sensor de ré, paineis falantes etc), até porque cada uma delas parece feita para estourar os miolos como se fossem bolhas. Se alguém fabricasse tais dispositivos com melodias tranquilas, sons de pássaros ou violinos, seria diferente – mas essa ideia é inviável, e sabem por quê? Por que os empresários por trás das máquinas querem, em cada detalhe, nos afastar da natureza e da arte. Um dia não ouviremos mais bem-te-vis ou galos (quantas pessoas ainda os ouvem?) e teremos desaprendido a escutar as águas do mar e o vento nas palmeiras. E hoje a tecnologia, através dos seus usuários invasivos, já nos força a antecipar essa ocasião catastrófica: um futuro em que não teremos de jeito nenhum os sons meigos do mundo.
            Desconfio das pessoas tagarelas, dos inquietos com seus joguinhos que espocam em miniteclados – e detesto sinceramente os fãs de campainhas (o que há de errado com batidas na porta?). Por causa de todos eles, não me desfaço de dois pequenos milagres na forma de esponjinhas discretas: meus protetores auriculares, que escondo sob o cabelo durante reuniões tempestivas ou sempre que preciso me proteger do barulho –  esse lixo invisível de alta frequência.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

Um comentário:

  1. Como povo, nos falta educação para saber apreciar o valor do silêncio. Em muitas ocasiões, o silêncio "vale ouro", mas preferimos (des)gastar a tranquilidade com falas pobres.
    Só uma "correção" na crônica: o lixo sonoro é invisível, mas não é somente de alta frequência, ocupada toda faixa!

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