LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Os cupins

OS CUPINS


Naquela tarde, o amado estava folheando um atlas de onicomicoses, e eu me preparava para fazer um café, quando reparei na poeira ao lado da porta. “Engraçada, essa sujeirinha que fica voltando”, comentei, enquanto enchia o bule. “Que sujeirinha?” – quis saber o amado. Apontei os grãos numa pilha triangular, diminuta, ao pé da porta. Disse que tinha varrido várias vezes, mas logo o montinho de areia voltava.
“ISSO É CUPIM!” – escutei. Ao mesmo tempo em que uma labareda azul atingiu o bule, o susto também me incendiou. Quis derramar todo o café no chão: juro que naquele instante olhei para o pacote com uma desconfiança absurda, como se estivesse criando cupins numa embalagem aromática. Só depois entendi que os malditos estavam na tal poeirinha – ou melhor, estavam na porta, dentro dela, roendo a madeira e expelindo a dureza processada em grãos.
Nos minutos seguintes, pressenti cupins a me sitiarem, escondidos nas reentrâncias de qualquer móvel. Lembrei uma escrivaninha que tive na adolescência: ela ficou coberta por um lençol, durante uma viagem. No meu retorno, estava tão esburacada quanto uma colmeia, cheia de minúsculos pontos pretos e furiosos. Aquele tinha sido o meu único (e traumático) contato com o inseto, mas eu já me via expulsa de casa, sem armário nem cama – todos cavados em labirintos de mordida.
Alcancei com desespero minha biblioteca; cheguei a vistoriar alguns livros, buscando trilhas de mastigação. Felizmente, tudo parecia intacto, e apenas a porta abrigava os temíveis hóspedes. Deviam ter hibernado por meses, até começarem a se manifestar. “Mas agora”, dizia o amado, “temos que chamar uma firma de dedetização”. Telefonei bastante, para encontrar uma que não sugerisse envenenamento coletivo. A maioria exigia a casa inteira “à disposição” para injeções e pinceladas tóxicas de efeito prolongado. A que eu escolhi propôs um tratamento brando – mas ainda assim, no dia seguinte, mostrei a porta a um homem que se vestia como se viesse da usina de Fukushima.
Ele manejou vários instrumentos, espetando e raspando a madeira. Ao final, disse que o veneno não tinha cheiro mas era eficaz. Falou em garantias dadas pela vigilância sanitária e me passou um recibo, com a mão enluvada. Quando saiu, ainda envolto em máscaras, eu me afastei da porta. Ela ficou livre de cupins, mas talvez esteja tão perigosa quanto uma pedra de urânio.

            Tércia Montenegro (crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/03/28/noticiasjornalopiniao,2810014/os-cupins.shtml)

2 comentários:

  1. Muito engraçada a crônica! Por favor, qual o telefone da empresa exterminadora de cupins?

    Obs: uma pedra de urânio só representa perigo por uns 25 bilhões de anos, depois desse prazo a radioatividade dele perde a validade. E o urânio deixou de ser urânio, ou pelo menos a maior parte dele.

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