ÁGUA SALGADA
A maravilhosa Karen Blixen, no primeiro conto das suas Sete narrativas góticas, traz uma reflexão que mostra como a literatura equivale a uma conversa com pessoas sábias. O texto se intitula “Dilúvio em Norderney”, e lá pelo meio da história o personagem Jonathan, desgostoso da vida, desabafa com seu pai, que lhe responde: “Sei de um remédio bom para tudo: água salgada.”
Água salgada – seja do suor, das lágrimas ou da água do mar – é, de fato, um recurso pelo qual a maioria dos problemas se resolve. Grandes mudanças acontecem através do esforço, do trabalho árduo e insistente: o tal suor do ofício, como dizem. Assuntos financeiros, profissionais ou burocráticos estão sob o jugo dessa insistência – uma batalha miúda, dia a dia desgastada, até o instante em que as coisas enfim se resolvem. Para os que estão de fora, às vezes parece um milagre...
Em outros casos, entretanto, o empenho físico não adianta. Penso nas clássicas questões emotivas, que arrancam boa dose de tristeza ou, quem sabe, arrependimento. Aqui as lágrimas têm uma utilidade inestimável para a recuperação – sem essa catarse, sabe lá se não sufocaríamos, numa explosão interna de sentimentos? Por isso quem nunca chora se transtorna, mais cedo ou mais tarde. Motivos não faltam, geralmente associados à perda de um afeto. Quem nunca viveu amores ou amizades que desaparecem em definitivo ou entram na fase de espera? Toda morte, simbólica ou real, merece uma libação de lágrimas.
Por último, temos a água salina que está fora do indivíduo, é tempero de paisagem. A observação mostra que o mar, com seu grandioso panorama, muda a proporção de nossos míseros problemas. Basta contemplar as ondas, o ritmo periódico da natureza, para relativizar o que se vive, enxergar a potência trivial de nossas próprias marés, altas ou baixas que sejam. Se por acaso os problemas não forem tão míseros, o mar sempre ajuda a esquecer: dizem que apreciar sua beleza afugenta dor e má energia. Há ainda a opção de fugir por sua rota navegável. Viajar também é uma forma de lidar com problemas, escapando deles quando não resta outra medida.
Nesse ponto, a literatura de Karen Blixen imita o mar por ser claramente viajeira, carregando passageiros numa deliciosa fuga imaginária. Esta é, aliás, a característica de toda boa ficção: deve ser marítima pelas qualidades de mistério, profundeza e travessia. Assim a história desliza como água e, feito o sal, conserva o leitor disposto, com o olhar treinado para os horizontes.
Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/03/14/noticiasjornalopiniao,2801151/agua-salgada.shtml)
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