O escritor e crítico literário Rinaldo de Fernandes fez uma resenha sobre meu livro O tempo em estado sólido. Confiram o texto abaixo:
O BIZARRO E O POÉTICO
EM TÉRCIA MONTENEGRO
por Rinaldo de Fernandes
É da força dos contrários que Tércia Montenegro extrai a substância de seus contos em O tempo em estado sólido, livro vencedor do Prêmio Governo do Estado de Minas Gerais 2010, publicado agora, em 2012, pela Ed. Grua, de São Paulo.
Tércia
é uma contista tchekoviana. Pouco enreda e extrai das situações
narradas sentidos fortes, profundos, da natureza humana. Consegue em
poucos passos jogar o leitor na interioridade intrincada de seus
personagens.
Seus
protagonistas, permanentemente, vivem sentimentos antagônicos. Há nos
contos uma mistura de afeto e desafeto, de amor e ódio. Acomodam-se, no
mesmo enredo, o bizarro e o poético.
Bizarra
é a personagem Leila, de "A alma e o peso", como liberada, intensa, é
Larissa, em "Pleno trânsito". É muito bem armada a intriga de "As
paisagens", em que o trágico e o estético se sobrepõem, quando da visita
do protagonista à galeria de arte. "O mágico" é um belo conto, que
mistura miséria (a do avô cego de uma garota) e magia (transposta com
engenho, na narrativa, para o campo semântico da malícia – a do artista
seduzindo a garota para partir com ele). Outro excelente conto é
"Serpentina", que flagra o ciúme forte de uma mulher. Mulher e marido
estão diante de uma adolescente que, num hotel, morre afogada diante do
casal (o marido estava visivelmente desejando a adolescente) – Eros e
Tânatos, tragédia e sadismo, porfiam no enredo.
Em
"O que reluz e arde no ar", o tema da prostituição é explorado com
poesia e sutileza, sem que o narrador deixe de lançar sobre a
protagonista um olhar impiedoso, profundamente realista. "Aquarela com
bonsai", criando um intertexto com a pintura (como em outros momentos no
livro), narra uma cena de sexo a três, da qual participa uma negra
bela. Conto bizarro e de atmosfera lírica. "A ignorância" tematiza a
incomunicabilidade humana, os silêncios instransponíveis entre os
indivíduos.
"Cartografia
de instantes" é onírico, com personagem solitária, extraindo do vazio
as suas mais fortes sensações (aliás, a solidão é um tema central no
livro).
"O
lado imóvel", mais uma vez trazendo o intertexto com a pintura, narra a
aventura de dois garotos que seguem para tentar pegar os quadros de um
pintor (pai de um dos garotos) que foram confiscados e estão no depósito
da alfândega. Um enigma envolve os quadros. Trata-se de uma narrativa
mais fluída, de ritmo mais acelerado, abrigando o suspense.
Em
"A sugestão", o protagonista, um escritor (escritor, pintor ou
fotógrafo são tipos presentes no livro), sofre de síndrome do pânico.
Conto que flerta com o fantástico. Traz mais uma vez uma situação
bizarra, misturando de novo sentimentos opostos – enquanto o marido,
inseguro e incerto por conta da doença, segue para um enterro, a mulher o
trai num motel. No final, o casal se recompõe na sua (falsa ou
fantasiosa) harmonia.
"Carceragem",
também inserido no contexto familiar, tematiza a demência, codificada
na desarmonia entre duas irmãs. "Exposição" (o próprio título remetendo à
pintura) traz um interessante diálogo de um casal sobre sedução e
sentimento. "As moedas" narra um crime num circo, de um homem frustrado
por não ter filhos. Também é uma narrativa mais fluída, que difere da
densidade da maioria dos contos.
"Semelhante
ao mar" encerra o volume. Lembra um pouco "Venha ver o pôr do sol", de
Lygia Fagundes Telles (de quem, alias, vejo influências em Tércia). A
protagonista se dirige para um cemitério, para o velório do pai na
capela. Ela carrega um ódio profundo pelo pai, mesmo ele estando morto:
“Não aceita a simbólica pazinha de enterrar, nem trouxe flores que
derramasse num gesto bailarino”. No fim, a protagonista segue para
tentar rever um amor da adolescência. Ódio e afeto (metaforizado na
memória de uma paixão) se entrelaçam neste que é provavelmente o melhor
conto do livro.
Há
ainda nos contos metáforas muito bem elaboradas, que se afinam,
perfeitas, precisas, às situações narradas. Tudo isso fazendo de Tércia
Montenegro um dos nomes mais expressivos do conto brasileiro
contemporâneo. Uma autora para ser lida e aplaudida.
Fonte: http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/
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