LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Carta a Cecília Meireles

CARTA A CECÍLIA MEIRELES

            Minha querida Cecília,
            Escrevo-te pela primeira vez, como se fosses íntima, bem próxima de minha convivência. Sobretudo escrevo-te como se pudesse ter uma resposta, fingindo não dar conta de teu desaparecimento, há mais de quatro décadas. Apenas a literatura é capaz de milagres dessa natureza.
            Lembro que li pela primeira vez teus versos quando era criança – brinquei com as rimas de Ou isto ou aquilo, aprendendo que a palavra é flexível. Depois, passei para as crônicas de viagem e para a vaga música de outros poemas. Visitei os inconfidentes com teu Romanceiro, participei de retratos, canções e tantos naufrágios. Sim, minha querida, talvez os naufrágios tenham sido o meu principal encanto. Eu, que nunca poderia viver distante do mar, encontrei a perfeita ressonância naqueles acordes de água e pedra.
            Mais tarde, curiosa de outros detalhes, descobri coincidências entre nós: o magistério, o misticismo, a solidão indispensável. Aprendi com tua história que a morte pode ser suavemente celebrada. Contigo, visitei o Oriente e encontrei tua irmã de poesia, Gabriela Mistral (aliás, Lucila Godoy Alcayaga). Bisbilhotei tua correspondência com o Mário de Andrade e tive a delícia dos segredos encontrados. Acompanhei um pouco tua rotina, a paixão pelo folclore, por flores e silêncio. Também conheci tuas filhas e netos, palmilhei muitos de teus passos – tudo pelo velho milagre literário.
            É por isso, Cecília, que hoje arrisco escrever esta carta: para que saibas que não compreendo inteiramente os mistérios que já desvendaste, mas, assim mesmo, ler teus versos me tranquiliza. Recordo que o instante existe, que a vida agora está completa – e nada mais é necessário. Talvez eu queira apenas de vez em quando contemplar tua foto, pensando na verdade de teus olhos claros. Olhinhos de gato.
            Beijos da sempre leitora
                                                            Tércia 

(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site  http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/05/23/noticiasjornalopiniao,2844361/carta-a-cecilia-meireles.shtml)  

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