CARTA
A CECÍLIA MEIRELES
Minha querida Cecília,
Escrevo-te pela primeira vez, como
se fosses íntima, bem próxima de minha convivência. Sobretudo escrevo-te como
se pudesse ter uma resposta, fingindo não dar conta de teu desaparecimento, há
mais de quatro décadas. Apenas a literatura é capaz de milagres dessa natureza.
Lembro que li pela primeira vez teus
versos quando era criança – brinquei com as rimas de Ou isto ou aquilo,
aprendendo que a palavra é flexível. Depois, passei para as crônicas de viagem
e para a vaga música de outros poemas. Visitei os inconfidentes com teu Romanceiro,
participei de retratos, canções e tantos naufrágios. Sim, minha querida, talvez
os naufrágios tenham sido o meu principal encanto. Eu, que nunca poderia viver
distante do mar, encontrei a perfeita ressonância naqueles acordes de água e
pedra.
Mais tarde, curiosa de outros
detalhes, descobri coincidências entre nós: o magistério, o misticismo, a
solidão indispensável. Aprendi com tua história que a morte pode ser suavemente
celebrada. Contigo, visitei o Oriente e encontrei tua irmã de poesia, Gabriela
Mistral (aliás, Lucila Godoy Alcayaga). Bisbilhotei tua correspondência com o
Mário de Andrade e tive a delícia dos segredos encontrados. Acompanhei um pouco
tua rotina, a paixão pelo folclore, por flores e silêncio. Também conheci tuas
filhas e netos, palmilhei muitos de teus passos – tudo pelo velho milagre literário.
É por isso, Cecília, que hoje
arrisco escrever esta carta: para que saibas que não compreendo inteiramente os
mistérios que já desvendaste, mas, assim mesmo, ler teus versos me tranquiliza.
Recordo que o instante existe, que a vida agora está completa – e nada mais é
necessário. Talvez eu queira apenas de vez em quando contemplar tua foto,
pensando na verdade de teus olhos claros. Olhinhos de gato.
Beijos da sempre leitora
Tércia
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/05/23/noticiasjornalopiniao,2844361/carta-a-cecilia-meireles.shtml)
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