OS
SONÂMBULOS
Talvez, pelo título desta crônica, um
voraz leitor pense que vou tratar daquela obra memorável, Os sonâmbulos, de Hermann
Broch. Ora, minha pretensão é bem menor: apesar de abordar assunto homônimo e
aparentado ao do escritor austríaco (ao menos pelo que há de louco e filosófico
neste tema), quero me dedicar ao trivial, à vida rotineira. Sim, porque
sonâmbulos existem muitos, aqui mesmo em nossa cidade, em frenética atividade
noturna e secreta.
O mistério das ações realizadas
durante o sono escapa às próprias pessoas que executam estas tarefas. Se algum
dia chegam a se tornar conscientes do distúrbio, é pelo testemunho de alguém
(que obrigatoriamente estava acordado), ou pelo registro de câmeras infiltradas
sabe-se lá onde. Há os que cozinham durante o sono, os que se entregam a
ensaios de mímica e os que se contentam em abrir gavetas à procura de um
sapato. A maior parte desses atos deixa pistas, marcas que no dia seguinte se
tornarão estranhíssimas. A polícia é chamada; culpam-se familiares ou vizinhos,
até que o ingênuo sonâmbulo perceba que o problema está nele próprio.
Dificilmente
a cura existe: conheço um homem tentou de tudo – da acupuntura ao exorcismo –
mas, por fim, resignou-se. Pôs rede de proteção na varanda e ferrolhos duplos nas
portas, para conter seus impulsos oníricos de fuga.
As histórias de noctambulismo,
porém, às vezes são poéticas e artísticas. Determinada senhora, que durante a
adolescência desejou ser dançarina, passa as madrugadas bailando enquanto dorme
– e o detalhe é que segue a coreografia de Pina Bausch no espetáculo Café
Müller: dança com uma camisola branquíssima e muito fielmente, mas não
há quem lhe tire as cadeiras do caminho. Assim, o exercício termina com vários
hematomas, numa sala destruída... E o que dizer do pintor francês Georges
Seurat? Sabe-se que alguns de seus quadros – principalmente os delicados nus do
final da década de 1890 – foram pintados durante sessões sonambúlicas. É de se
admirar tanta proeza, sobretudo quando sabemos que a técnica do pontilhismo
cria uma textura tão detalhada!
Entretanto, existem sonâmbulos do
mal, figuras sinistras que se aproveitam do sono para justificar todo tipo de
atitude. Nunca ouviram falar naquele político que supostamente tinha o hábito
de assinar cheques em branco, enquanto dormia? Ele teria beneficiado inúmeros
comparsas, que ficavam à espreita, na porta de seu quarto – mas há quem diga
que essa versão apenas encobre uma corrupção safada e bastante consciente (como
todas as que acontecem, aliás). Outros casos, de assassinos a adúlteros, têm
sido inocentados quando se atribui ao sono a responsabilidade pelos atos. Por
enquanto ainda são raros esses episódios de absolvição na justiça brasileira –
o que nos livra de uma sociedade em que a violência, a longo prazo, seria
atribuída ao delírio de adormecidos sanguinários. Por enquanto, basta que nos
preocupemos com os insones em sua vigilância implacável.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/07/04/noticiasjornalopiniao,2871643/os-sonambulos.shtml)
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