IMPACIência
“Olha, para falar a
verdade, não estou nem aí”, estive para dizer – e disse até, a outras pessoas
mais próximas que me chegaram antes, melancólicas ou desesperadas, comentando
previsões. Tudo apontava à mesma trilha, ou seja, trilha nenhuma, fim do mundo,
nada de futuro daqui a uma semana, entendeu? – tentava me explicar Mauro, de
Bíblia numa das mãos e jornal na outra. Eu coava o café de costas para ele, mantendo-me
calada para não ironizar seus argumentos tão ecléticos. De um lado, o jornal trazia
tarôs, cabalas, aeromantes que viam a sorte nas nuvens e no vento, adivinhos os
mais variados, que encomendavam pérolas ou ovos para ler mensagens em sua
superfície, e lembro que havia até um respeitado arqueólogo que usava um
martelo para fazer previsão através de fósseis. Na Bíblia, o veredito era
idêntico, pelos trechos do apocalipse que Mauro agora recitava: trombetas,
sinais e taças anunciando a morte próxima.
“Com
açúcar ou adoçante?”, perguntei, e creio que por um instante Mauro pensou que
eu estava ridicularizando o final que nos ameaçava. Olhou-me sério, quase
raivoso, mas então percebeu a xícara que eu lhe estendia e sentou-se no banco
da cozinha: com açúcar; não faz diferença. “Entretanto, continuamos a tomar um
bom café”, comentei, depois do primeiro gole. Mauro desanimou um pouco, viu que
o esforço para me converter não estava adiantando. Afinal, o que mudava, se eu
acreditava ou não na catástrofe? Ela não deixaria de acontecer: havia muitas
setas apontando para o mesmo texto, embora com variações do modus operandi: alguns falavam em
línguas de fogo, terremotos ou raios fulminantes. Outros garantiam uma simples
explosão súbita, assim como se a Terra virasse um balão que de repente espoca –
e eu imaginava cada partícula de montanha lançada no espaço, a torre Eiffel
como um alfinete a voar, catedrais se desfazendo feito areia, mares respigando
no cosmo, talvez muito lentamente (diziam os físicos), e nós, seres mínimos,
arremessados em dissolução, transformados em vácuo ou som que reverbera e ninguém
escuta. A tese mais aceita, porém, era a da grande onda a varrer continentes –
o que significava que haveria locais preservados. Afinal, o fim não parecia ser
de tudo a um só tempo; recônditos desertos ficariam intactos, e inclusive já deviam
estar sendo ocupados pelos magnatas. Os excessivamente ricos tomam suas
providências: políticos constroem bunkers refrigerados no Saara, ou então se
mandam para algum tipo de satélite onde planejam viver flutuando, com as
famílias escolhidas para repovoar o mundo em algumas décadas. Pensei naquelas
arcas de noé siderais e fiquei sinceramente deprimida pela geração seguinte.
Ainda bem que eu não estaria presente para ver aquela história ou conviver com
seus personagens. No momento, era o bastante suportar Mauro com sua ladainha de
urgência, como se a alma fosse a única coisa a salvar, uma espécie de HD com as
memórias da fé e da redenção. Eu não acreditava que ele havia comparado o
espírito com um computador, mas ele continuava no raciocínio: se eu acessasse aquele meio, estaria garantida para sempre, por toda a
eternidade teria paz.
Mas
a paz virá de qualquer jeito, com o nada – argumentei, folheando o jornal, que citava
antigas cosmogonias, ciclos de criação e destruição conforme os hindus. “Dias e
noites de Brahma”, li em voz alta, e Mauro novamente pegou a Bíblia para catar
versículos. Eu continuei passando a vista sobre as páginas, enquanto ele
testava o efeito nulo de uns trechos apocalípticos sobre mim. Eu estava mais
interessada no divino carma da Índia, no véu de Ísis ou no eclipse celta: um
emaranhado de informações que num relance fisguei, antes de tomar o último gole
de café. Sentia-me exausta com tantas palavras; mesmo escritas, elas criavam um
barulho incômodo, o retorno de um pensamento obsessivo, círculos de tédio.
Talvez Mauro finalmente me compreendesse, pois se calou e disse que estava na
hora de ir. Despediu-se com ar de fatalismo, segurando meus dedos à maneira de
um velho mestre. Mas, quando fechei a porta, achei estranho que ele não tivesse
também lançado um olhar de despedida ao meu apartamento. Eu própria já havia
contemplado muitos locais da cidade com aquele desprendimento saudoso de quem
sabe que não vai retornar. Era o olhar de dor e conformismo que eu aplicara um
mês antes sobre o homem que parecia ser o amor da minha vida e no entanto me
traíra de um jeito tão vergonhoso. Eu pensava nele agora, nos planos que
tínhamos feito, brincando, de passar o fim do mundo juntos e abraçados, na
cama. Ele dissera que ia gostar de morrer num desastre coletivo; seria apenas
uma vítima dentre tantas e não haveria luto, sofrimento, alguém que ficasse
chorando o abandono.
Ele
se enganara por questão de dias. Não tivesse eu descoberto as mensagens e
mentiras que camuflavam sua dupla existência, estaríamos ainda sonhando em nos
transformar na reprise do lendário casal de Pompeia, encoberto por cinza tóxica
durante um sono de prazer – ou pelo menos eu faria isso; sozinha, estaria
fantasiando que seríamos pulverizados em simultâneo, reduzidos a sombras ou
suspiros. Mas o tempo escorregou nos seus propósitos, e as coisas se
anteciparam: individualmente, em absoluta solidão, fui aberta por uma faca,
esmagada e estilhaçada por dentro. Que me importava uma segunda morte, midiática
ou sensacionalista? Mauro havia esquecido a Bíblia sobre a mesa da cozinha, mas
não senti qualquer impulso de pegá-la. O jornal também ficou ali, desordenado, com
as folhas balançando como asas moles sob o peso das xícaras. Eu me aproximei da
janela para observar as silhuetas miúdas que passavam na rua em frente, próxima
ao parque. Na extremidade do chafariz, apesar da distância, sei que uma gárgula
me sorri. Ela parece uma pedra cantando versos de dilúvio; diz que falta
somente uma semana para a ausência de futuro, e – quer saber? – eu mal posso
esperar pelo fim de tudo.
Tércia Montenegro (conto publicado hoje no Vida & Arte, do jornal O Povo. Disponível também no site)
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