LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

À espera do estético


À ESPERA DO ESTÉTICO

            Como participante do Semioce, grupo de estudos semióticos da Universidade Federal do Ceará, tenho vivido vários instantes de junção entre teoria e arte. Para mim a semiótica é a ferramenta mais satisfatória para quem deseja se aprofundar nas questões relativas à construção do fazer literário, musical, pictórico etc. Mas é claro que, enquanto disciplina que sistematiza os seus procedimentos, ela exige uma iniciação técnica – e um jornal não é espaço para a discussão de tema tão complexo. Hoje eu gostaria apenas de sugerir um ponto reflexivo, a partir do livro Da imperfeição, de Greimas. Nessa obra, o autor ensaia os modos de apreensão do sentido pelo corpo sensível e coloca o estético como possibilidade de fratura de uma rotina.
            Simplificando, poderíamos dizer que quando algo provoca essa quebra do óbvio, da mesmice em que estamos imersos, promove o arrebatamento do indivíduo. O sujeito se esquece de si, do próprio corpo com identidade e território delimitados no mundo. É arrastado bruscamente pela experiência estética – que ocorre no contato inesperado com a arte, ou mesmo com um elemento do cotidiano capaz de alcançar essa dimensão de “estranhamento”, essa suspensão do previsível. No instante encantatório, sujeito e objeto tornam-se um, fundem-se numa espécie de laço primordial.
            Há um momento no livro em que Greimas cita Baudelaire, e talvez o comentário do poeta seja decisivo à compreensão que desejamos: “o inesperado, a surpresa, o assombro, são uma parte essencial e característica da beleza” – diz o autor de Les fleurs du mal. Aqui, o conceito de beleza, ou de estético, não está agregado a nada em particular; pode existir num poema, num som ou num rosto. Importa somente que haja esse impacto, o susto de não prever nada – e, de repente, fundir-se a esse objeto de estesia, num átimo de deslumbramento. No instante seguinte, a pessoa já volta a ser quem era antes, recupera as sensações habituais e torna a pôr os pés no chão, por assim dizer. Pode ser que ainda admire a obra e até tente explicar com palavras o efeito que ela proporcionou. Mas o arrebatamento já se perdeu; o instante de união sagrado passou, porque passou a surpresa, e ela não pode ser forjada uma segunda vez.
            A experiência, que acontece como primeira e última, ou “primúltima”, como Greimas coloca, está destinada a libertar e reatar as continuidades do cotidiano. O indivíduo põe-se à espera de novos “acidentes estéticos” e, se por um lado incomoda saber que essas ocasiões são tão fortuitas, sob outra perspectiva é um consolo ter a beleza como chance súbita de êxtase, dentro de uma vida mesquinha. O fato de cada alumbramento ser tão fugaz acaba sendo um retrato de nosso próprio destino humano, igualmente perecível, mas – por que negar? – surpreendente, em tantas coisas mínimas.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site)

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