O
QUE DESAPARECE
A
Nova antologia do conto russo,
recentemente publicada pela editora 34, sob organização de Bruno Barreto Gomide,
traz muitas histórias que precisam ser lidas, por motivos vários – quando não
pelo embevecimento, pela forte reflexão que contêm. Neste último caso,
enquadra-se “Liompa”, de Iuri Oliécha: não é exatamente um conto perfeito em composição
literária, mas consegue despertar pensamentos com impacto e consistência.
A história trata de um
moribundo, um velho a quem sobrevêm delírios em meio aos fragmentos de lucidez.
Num desses instantes, lê-se a respeito de como a doença proibiu coisas antes
tão corriqueiras ao personagem – e então foi como se as coisas se tornassem
fantasmas, sonhos de outra existência: “Num único dia desapareceram sua rua,
seu trabalho, o correio, os cavalos. De súbito, o desaparecimento chegou bem
perto dele: o corredor se esgueirou de seu poder e em seu próprio quarto, bem
debaixo de seus olhos, cessou o significado do sobretudo, do ferrolho da porta,
dos chinelos. Ele sabia: a morte, em seu caminho até ele, ia anulando as
coisas.”
Pois não é mesmo assim?
À medida que uma pessoa envelhece, as coisas vão desaparecendo para ela, vão se
tornando abstrações ou meros nomes de objetivos inalcançáveis. Países
estrangeiros, profissões diferentes, aventuras, o próprio emprego – tudo isso
fica destinado aos demais, aos que ainda “são ativos” ou se arriscam, têm pouca
idade e juízo. Talvez muitas dessas experiências não façam falta à maioria dos
idosos. Creio até que eles podem se satisfazer (ou se conformar?) com uma
rotina. Afinal, há projetos que a gente perde sem lamento, quando percebe que
eram ilusões ou correspondiam infimamente ao que se idealizou. Mas é triste
saber que numa determinada época os planos se tornam impossíveis, desaparecem
da perspectiva. E o que desaparece só aumenta, se é possível dizer isso. Com a
longevidade ou a doença, o mundo se reduz, cabe num quarto. As ruas não são
vistas; logo, parecem não existir. As roupas perdem a utilidade, os assuntos
ficam repetitivos, os rostos novos já não surgem.
Tenho um amigo cujo pai
é quase centenário e praticamente perdeu todos os prazeres sensitivos, exceto
beber água, bem gelada. O resto das atividades – comer, banhar-se, ler algo,
andar (sempre com assistência) – ficou doloroso ou cansativo demais. Beber água
é seu único gesto de alegria pura, satisfação e liberdade. Penso nesse homem
condenado a ver o mundo desaparecer, enquanto seu próprio corpo prepara também um
afastamento, lentamente vai minguando as chances para si. A única coisa que
deve impedi-lo de ofender a vida como um processo cruel, é o seu passado. Ele
tem a possibilidade de dizer, em relação ao que deseja: eu já fiz isso – ainda
que por um tempo mínimo, comparado ao que queria.
É
esse o projeto de velhice que cada um deveria ter: a construção de um rico
passado. Se não se pode aprisionar o tempo, que ao menos ele seja gasto ao
máximo, antes que desapareça.
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site.)
"É esse o projeto de velhice que cada um deveria ter: a construção de um rico passado."
ResponderExcluirA minha avó falava praticamente isso: é necessáio fazer o que quer e o que gosta quando se é jovem, para ter o que lembrar quando a velhice (e suas limitações) chegar.
Bela crônica, embora eu ache que seja mais semelhante a um pequeno ensaio existencial.