LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O que desaparece


O QUE DESAPARECE

            A Nova antologia do conto russo, recentemente publicada pela editora 34, sob organização de Bruno Barreto Gomide, traz muitas histórias que precisam ser lidas, por motivos vários – quando não pelo embevecimento, pela forte reflexão que contêm. Neste último caso, enquadra-se “Liompa”, de Iuri Oliécha: não é exatamente um conto perfeito em composição literária, mas consegue despertar pensamentos com impacto e consistência.
A história trata de um moribundo, um velho a quem sobrevêm delírios em meio aos fragmentos de lucidez. Num desses instantes, lê-se a respeito de como a doença proibiu coisas antes tão corriqueiras ao personagem – e então foi como se as coisas se tornassem fantasmas, sonhos de outra existência: “Num único dia desapareceram sua rua, seu trabalho, o correio, os cavalos. De súbito, o desaparecimento chegou bem perto dele: o corredor se esgueirou de seu poder e em seu próprio quarto, bem debaixo de seus olhos, cessou o significado do sobretudo, do ferrolho da porta, dos chinelos. Ele sabia: a morte, em seu caminho até ele, ia anulando as coisas.”
Pois não é mesmo assim? À medida que uma pessoa envelhece, as coisas vão desaparecendo para ela, vão se tornando abstrações ou meros nomes de objetivos inalcançáveis. Países estrangeiros, profissões diferentes, aventuras, o próprio emprego – tudo isso fica destinado aos demais, aos que ainda “são ativos” ou se arriscam, têm pouca idade e juízo. Talvez muitas dessas experiências não façam falta à maioria dos idosos. Creio até que eles podem se satisfazer (ou se conformar?) com uma rotina. Afinal, há projetos que a gente perde sem lamento, quando percebe que eram ilusões ou correspondiam infimamente ao que se idealizou. Mas é triste saber que numa determinada época os planos se tornam impossíveis, desaparecem da perspectiva. E o que desaparece só aumenta, se é possível dizer isso. Com a longevidade ou a doença, o mundo se reduz, cabe num quarto. As ruas não são vistas; logo, parecem não existir. As roupas perdem a utilidade, os assuntos ficam repetitivos, os rostos novos já não surgem.
Tenho um amigo cujo pai é quase centenário e praticamente perdeu todos os prazeres sensitivos, exceto beber água, bem gelada. O resto das atividades – comer, banhar-se, ler algo, andar (sempre com assistência) – ficou doloroso ou cansativo demais. Beber água é seu único gesto de alegria pura, satisfação e liberdade. Penso nesse homem condenado a ver o mundo desaparecer, enquanto seu próprio corpo prepara também um afastamento, lentamente vai minguando as chances para si. A única coisa que deve impedi-lo de ofender a vida como um processo cruel, é o seu passado. Ele tem a possibilidade de dizer, em relação ao que deseja: eu já fiz isso – ainda que por um tempo mínimo, comparado ao que queria.
            É esse o projeto de velhice que cada um deveria ter: a construção de um rico passado. Se não se pode aprisionar o tempo, que ao menos ele seja gasto ao máximo, antes que desapareça.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site.)

Um comentário:

  1. "É esse o projeto de velhice que cada um deveria ter: a construção de um rico passado."

    A minha avó falava praticamente isso: é necessáio fazer o que quer e o que gosta quando se é jovem, para ter o que lembrar quando a velhice (e suas limitações) chegar.

    Bela crônica, embora eu ache que seja mais semelhante a um pequeno ensaio existencial.

    ResponderExcluir