LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

domingo, 23 de maio de 2010

A fase sensível


Depois de um mês entregue aos prazeres do corpo e assombros da alma, resolvo lembrar que existem as necessidades do intelecto. Este fim de semana, pois, foi dedicado a filmes e livros (com uma breve incursão pelo terreno das artes plásticas, em visita ao grande Weaver, para lhe comprar duas telas e conversar sobre quadrinhos e grafites). Encerrei a sexta-feira com O segundo rosto, de Johhn Frankenheimer, trazendo Rock Hudson no papel principal. Desde a abertura, este filme da década de 1960 impressiona pela estética, oscilante entre um expressionismo à la O Gabinete do Dr. Caligari e um surrealismo com trabalho de perspectiva que lembra algumas imagens do De Chirico. Mas o enredo, acima de qualquer coisa, é muito bom. Talvez alguns momentos de diálogo pudessem ser menos monótonos – e fiquei com a sensação de que a construção do protagonista, em suas dúvidas existenciais, poderia ser mais convincente. Apesar disso, o final não poderia ser outro, e o diálogo com o livro de Pirandello é inevitável. Já separei O falecido Mattia Pascal, para relê-lo (e como é bom fazer releituras!).

Como havia terminado A suíte elefanta, do Paul Theroux (dedicando vários minutos para saborear o assombro da última novela, e sobretudo para analisar o terrível sentimento de prazer e identificação que o desfecho me trouxe), resolvi migrar do tema da Índia para a literatura italiana... e o Pirandello em reserva deve continuar esta trilha. O Léxico familiar, da Natalia Ginzbourg, está fazendo com que eu mergulhe um pouco no universo biográfico alheio. Assim como nos quadrinhistas citados na conversa com o Weaver (Crumb, J. Carlos Fernandes, Dash Shaw, Chris Ware, David B.), percebo na Natalia esta tendência confessional-crítica, que é tão diferente da confessional-piegas ou da confessional-vítima. Talvez apenas a primeira modalidade – escorregadia, embora – possa atingir o nível de arte e, quando o faz, promove tanta identificação que parece absurdo que histórias tão pessoais ganhem aceitação tão grande.

Voltando aos filmes, no sábado vi Patch Adams, inspirada por uma entrevista que li na revista Planeta, com o médico que motivou o papel do Robin Williams. O verdadeiro Patch criticou, naturalmente, a distorção hollywoodiana que o cinema fez de sua vida, mudando papeis e fatos para agradar às massas. Concessões feitas à diferença que a realidade sempre trará, em relação à transfiguração estética, gostei do filme e recomendo, não só como boa história de vida (de novo a biografia alheia, que tanto nos atrai...), mas principalmente como diversão. Afinal, o humor é tão importante quanto o amor – já dizia o autêntico Patch.

Dr. Fantástico, do Kubrick, foi a terceira pedida da noite, e confesso que pensei que gostaria mais deste filme tão comentado. Talvez tenha ficado meio datado por algum motivo, não sei: não pela circunstância histórica essencialmente, pois se penso num livro como Armagedom em retrospecto, do Kurt Vonnegut, vejo que esta é também uma obra presa a circunstâncias de época – mas que consegue ser eterna.

O domingo me trouxe a história de O visitante, com Richard Jenkins: um filme com atmosfera despretensiosa, mas que comove e envolve. À semelhança do Patch Adams, traz aquele sentimento bom de ajudar, de estar perto das pessoas, arrancar um abraço ou sorriso. Sim, eu sei que isso pode parecer bobo – e normalmente não perdoo essas tendências melosas. Mas o que fazer, se estou numa fase à flor da pele? Isso ainda é conseqüência do Nunta muta, fantástico filme romeno que vi há alguns dias, numa encantada e praticamente vazia sala do cinema no Dragão...

2 comentários:

  1. gostei do nome 'a suíte elefanta'. e de 'nunta muta'. poria nos meus filhos.

    com relação ao filme do dr. fantástico, eu bolei de achar graça quando um dos militares lá diz: Gentlemen, you can't fight in here! This is the War Room!

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  2. Dr. Fantástico é um filme cheio de sutilezas, de humor negro e crítica. É um filme ácido.
    O general paranóico, o cientista alemão nazista que foi comprado pelos EUA, o militar cowboy que pensa estar num rodeio etc. Ah, e o final irônico, claro.
    Talvez ele realmente esteja muito preso a seu tempo, mas ainda hoje é, com direito a trocadilho, fantástico. :D

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