DE EVITA PARA MACEDONIO
Minha primeira impressão de Buenos Aires foi esta: a gigantesca foto de Ernesto Sábato num painel da 9 de Julho, o meu grito de reconhecimento e o taxista confirmando: “Sim, este é o escritor Sábato”. De imediato me perguntei se em alguma hipotética Fortaleza um dia eu poderia encontrar, por exemplo, uma imensa parede com o retrato de Moreira Campos, e se nessa cidade utópica os taxistas e todas as demais pessoas conheceriam o rosto de um escritor com tanta facilidade quanto hoje têm para identificar a feição de humoristas. Para isso, seria necessário que a leitura estivesse tão presente no cotidiano cearense como está na vida dos portenhos.
Não somente as inúmeras livrarias (com os estilos, tamanhos e acervos os mais variados) criam a atmosfera mágica de Buenos Aires – mas os livros também estão em outros lugares, nas praças, nos cafés, no metrô... Sempre há alguém lendo algo, e esse “algo” não é autoajuda ou obra teórica que se tem de concluir para uma prova. Lêem-se poemas, romances, contos, no meio da rua, em restaurantes, dentro de floriculturas e quitandas.
O hábito de leitura na capital argentina é tão exposto e visceral quanto suas vibrações políticas. Em uma semana de viagem, encontrei três passeatas de protesto (longas e bem organizadas) e percebi que os cartazes de denúncia, as palavras de ordem grafitadas na calçada, são parte da paisagem e do espírito do povo. Talvez uma coisa realmente leve à outra, e a consciência política se ligue à voracidade leitora. Buenos Aires não esquece o terror de sua ditadura – na mesma medida com que também não esquece os grandes autores que já abrigou. Borges, Cortázar, Arlt, Bioy Casares, Alfonsina Storni e muitos outros continuam a ser seu motivo de orgulho.
Em províncias vizinhas, a atmosfera se transforma, mas o comportamento persiste. San Isidro, por exemplo, tem como uma das principais atrações a casa-museu em que residiram as irmãs escritoras Victoria e Silvina Ocampo. Por ali passaram incontáveis artistas – e creio que o ambiente ainda é favorável a encontros mágicos, senão vejam: na hora em que chegamos para a visita estava no local apenas mais um estrangeiro, visivelmente indiano. Ele iniciou uma conversa num inglês estropiado, para nos dizer que era neto do Rabindranath Tagore (prêmio Nobel de Literatura), que estivera hospedado na casa, décadas antes!
Com tantos fluxos literários abençoando a viagem, no cemitério da Recoleta não resisti a um impulso. Roubei flores do túmulo de Evita (que, como vocês imaginam, estava superlotado de plantas), para deixá-las no austero jazigo de Macedonio Fernández – outro grande escritor argentino.
Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Texto publicado hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/10/12/noticiaopiniaojornal,2314162/de-evita-para-macedonio.shtml)
Buenos Aires é tudo de bom! Feliz dia dos Professores, Tercinha!!! Muito obrigada por tudo!
ResponderExcluirMuito bonita sua atitude, Tércia.
ResponderExcluirDividir flores entre mortos, é de uma grandeza inconteste. Parece que estou vendo a cena, poética demais. Se eu fosse um pintor...