Amigos, se puderem, leiam minha crônica publicada hoje no jornal O Povo e disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/10/26/noticiaopiniaojornal,2322692/medicina-e-ficcao.shtml)
MEDICINA E FICÇÃO
Tchekov, Schnitzler, Guimarães Rosa, Torga, Lobo Antunes e muitos outros (dentro de uma lista que se alarga cada vez mais) trazem em comum o fato de terem sido médicos e escritores. Não que sua literatura seja tematicamente guiada por esse fato; na maioria das vezes, a “profissão oficial” de um autor, ou a sua atividade técnica, pode ser mero detalhe biográfico. Mas será realmente assim, no caso da medicina? Quero pensar que não. Creio que este ofício já instiga uma criatividade primordial...
Para mim, que venho do berço das humanidades, é coisa espantosa a linguagem de um médico. Gosto de perguntar sobre os assombros científicos e me admiro da variedade interminável de doenças, algumas com nomes intrigantes ou divertidos. Fiquei aturdida, por exemplo, ao saber que existe algo chamado “doença mão-pé-boca”. Impressionei-me com a “maldição de Ondina”, enquanto achei a expressão “manchas nostálgicas” muito bela, com um sabor poético. Em compensação, “bufo-olftalmia” é um termo desagradável, e fico nervosa só de pensar em “leucemia de células cabeludas”. Há ainda as várias síndromes: dos cabelos impenteáveis, das faces esbofeteadas, a síndrome do cri du chat...
Os livros de medicina trazem aspectos linguísticos curiosos – basta pensar no uso de sinônimos ou nomes alternativos para várias enfermidades. A brucelose, por exemplo, também pode ser chamada de febre ondulante, febre de Malta ou doença das mil faces (e não sei qual termo me fascina mais!). O regionalismo abunda em opções para designar a escabiose: pode-se escolher entre sarna, pereba, curuba, pira ou quipá. E o que dizer de “espiroqueta”, “rash cutâneo”, “sopro sistólico” ou “lesão do sétimo par”? São expressões tão misteriosas para um leigo, que me sinto transportada para um mundo surreal. Talvez aí – no vocabulário técnico – resida uma agulhada de ficção que os médicos-escritores muito cedo percebem.
Mas conciliar uma prática científica com um gesto literário não significa misturar as produções, claro. Na emergência de um hospital, não interessam versos. Da mesma forma, a linguagem médica não deve resvalar para os textos que seus autores escrevem. Porém, os dois lados da vida se completam e influenciam. Mesmo que a experiência clínica não surja com evidência na hora da criação, o artista que é médico exercitou-se com as possibilidades abertas pelo seu ofício, aprendeu com exemplos reais e cruéis, com dores e salvamentos, equívocos ou milagres. Seu estudo do corpo lhe ensinou a observação de uma anatomia previsível ou deformada, com sintomas escusos ou doenças quase fictícias – uma lição constante da “criatividade” do organismo. Por que a mente e a sensibilidade não deveriam acompanhar esse ritmo? Por que o médico, feito escritor, não poderia (agora com outras ferramentas – textuais) pesquisar os seres humanos? Neste ponto de interesse, literatura e medicina tornam-se irmãs, embora com diferentes alcances curativos...
Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Amei, Tércia!
ResponderExcluirEstudo medicina, sonho com as letras. Mas não consigo sair daqui... não quero mesmo. Um dos motivos é esse, exatamente esse que você colocou aí: eu gosto do corpo, do que a gente sabe (ou acha que sabe) e dos mistérios, mais ainda dos mistérios. É bonito.
rsrsrs Síndrome dos "cabelos impenteáveis" é muito boa. Acho que conheço alguns assim, além dos nossos amigos carecas, é claro.
ResponderExcluirOutro sinônimo para sarna ou pereba, Tércia, deve ser "rabugem". Aprendi há pouco, quando resolvi lançar uma campanha para salvar alguns bichanos lá do Mercado São Sebastião. Disseram-me que eles tinham "rabugem". O melhor é que descobri que além de você, da Paula Izabela e da Fabiana Guimarães, tenho mais umas 8 amigas que adoram gatos.
Em tempo: Os gatos estão salvos. Umas injeções e comprimidos resolveram o problema.
Parabéns pela crônica. Gostei muito.
Bj
Cara Tércia,
ResponderExcluireditamos aqui em Salvador (BA) a revista Médico.Doc, direcionada a profissionais de Medicina. Gostaria de saber se pudemos publicar este bela crônica "Medicina e ficção" na próxima edição da revista.
Abraço do colega
Antonio Pastori