"Caviloso. Essa palavra saiu de moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e olham. Olham. Cavilosidade sugere cuidado, cave - aquele recôncavo onde o vinho envelhece. Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente."
"(...) indolente, companhia voluptuosa dos contemplativos. Das bruxas cismarentas. Dos amantes da idade da razão e depois ainda, memória e cinza. Amei meu gato quando descobri Baudelaire, viens mon chat, sur mon coeur amoureux..." (Lygia Fagundes Telles)
LIVROS E BICHOS
Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.
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domingo, 3 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Autobiografia do Chesterton
Desde o ano passado que eu queria fazer essa postagem, sobre a Autobiografia do Chesterton - mas as leituras foram se sobrepondo, e o tempo escasseando... Enfim, agora encontrei uma brecha para recomendar esse livro, mesmo para quem ainda não conhece a ótima literatura policial deste inglês. É certo que a autobiografia tem algumas passagens espinhosas, com referências culturais e históricas muito específicas, mas no geral o texto é tão divertido que compensa demais! Aqui vão alguns trechos, para degustação:
"Essa foi uma excelente primeira lição, no que é também a última lição de vida: a de que, em tudo que importa, o interior é bem mais que o exterior. Estou feliz, afinal de contas, por ele [seu pai] nunca ter sido um artista. Isso poderia ter lhe dificultado que se tornasse um amador. Isso poderia ter destruído sua carreira - a sua carreira privada. Ele poderia nunca ter feito o sucesso vulgar que fez em todos os milhares de coisas que ele fazia tão bem." (pp.62-3)
"Quando ateus estúpidos vinham até mim e me explicavam que não existe nada além da matéria, eu ouvia com uma espécie de sossegado horror, de indiferença, suspeitando que não havia nada além da mente. Desde então sempre tive a impressão de que há nos materialistas e no materialismo algo de ralo e de segunda mão. O ateu me dizia tão pomposamente que ele não acreditava que existisse qualquer deus, e havia momentos em que eu não acreditava sequer que existisse algum ateu." (p.118)
"(...) nenhum homem sabe o quão otimista ele é, mesmo quando se proclama pessimista, porque ele não mediu de fato a profundidade de sua dívida para com seja lá o que o criou e o capacitou a proclamar-se qualquer coisa. Debaixo do seu nariz, por assim dizer, tem o homem uma esquecida chama ou explosão de espanto diante de nossa existência. O objetivo da vida artística e espiritual é cavar até essa submersa aurora de espanto, de modo que um homem sentado numa cadeira possa compreender subitamente que ele está realmente vivo - e então se sentir feliz." (p.121)
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
Stalker
Tenho visto ótimos filmes nos últimos dias: A pessoa é para o que nasce (documentário maravilhoso), Do mundo nada se leva (um clássico que faz a gente pensar na "comercialização do medo", tão comum e crescente) e Apertem os cintos: o piloto sumiu (para risadas a cada cena). Mas Stalker, de Tarkovski, foi uma escolha motivada pela leitura recente do livro de Geoff Dyer, que citei na postagem abaixo (e depois, terei a chance de voltar a esse assunto, espero). Não somente as imagens do filme são belíssimas e inesquecíveis, mas há um trecho que mereceu o play-pause repetido, para que eu o anotasse:
"Que se cumpra o idealizado. Que acreditem. Que riam das suas paixões. Porque o que consideram paixões, na realidade, não é energia espiritual, mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem neles próprios e se tornem indefesos como crianças, porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada. Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre, é impassível e duro. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece nunca vencerá." (Parte II)
"Que se cumpra o idealizado. Que acreditem. Que riam das suas paixões. Porque o que consideram paixões, na realidade, não é energia espiritual, mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem neles próprios e se tornem indefesos como crianças, porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada. Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre, é impassível e duro. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece nunca vencerá." (Parte II)
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
Sobre as árvores
Trecho do livro do Geoff Dyer (Ioga para quem não está nem aí):
"O ser da árvore consiste inteiramente em crescer", disse Circle durante um dos nossos passeios.
"Discordo."
"Eu também."
"Balançar as folhas ao vento. Fornecer poleiros para os pássaros, ser uma coisa que o céu pode rodear. Ser uma coisa em que se pode subir. Tudo isso é parte do ser da árvore." (p.54)
"O ser da árvore consiste inteiramente em crescer", disse Circle durante um dos nossos passeios.
"Discordo."
"Eu também."
"Balançar as folhas ao vento. Fornecer poleiros para os pássaros, ser uma coisa que o céu pode rodear. Ser uma coisa em que se pode subir. Tudo isso é parte do ser da árvore." (p.54)
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
O perseguidor
Trecho do conto "O perseguidor", do livro As armas secretas, do Cortázar - cada vez mais pertinente e essencial:
" - O problema é que eles se acham sábios - diz de repente. - Eles se acham muito sábios porque juntaram um montão de livros, e comeram todos. Isso me faz dar risada, porque na verdade são boa gente e vivem convencidos de que o que estudam e o que fazem são coisas difíceis e profundas. (...) As pessoas acham que algumas coisas são o máximo da dificuldade, e por isso aplaudem o trapezista, ou me aplaudem. Eu não sei o que imaginam, que eu estou me arrebentando para tocar bem, ou que o trapezista rompe os tendões cada vez que dá um salto. Na verdade, as coisas verdadeiramente difíceis são outras tão diferentes, tudo que a gente acha que pode fazer a qualquer momento. Olhar, por exemplo, ou compreender um cão ou um gato. Essas são as dificuldades, as grandes dificuldades."
" - O problema é que eles se acham sábios - diz de repente. - Eles se acham muito sábios porque juntaram um montão de livros, e comeram todos. Isso me faz dar risada, porque na verdade são boa gente e vivem convencidos de que o que estudam e o que fazem são coisas difíceis e profundas. (...) As pessoas acham que algumas coisas são o máximo da dificuldade, e por isso aplaudem o trapezista, ou me aplaudem. Eu não sei o que imaginam, que eu estou me arrebentando para tocar bem, ou que o trapezista rompe os tendões cada vez que dá um salto. Na verdade, as coisas verdadeiramente difíceis são outras tão diferentes, tudo que a gente acha que pode fazer a qualquer momento. Olhar, por exemplo, ou compreender um cão ou um gato. Essas são as dificuldades, as grandes dificuldades."
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
À espera do estético
À
ESPERA DO ESTÉTICO
Como
participante do Semioce, grupo de estudos semióticos da Universidade Federal do
Ceará, tenho vivido vários instantes de junção entre teoria e arte. Para mim a
semiótica é a ferramenta mais satisfatória para quem deseja se aprofundar nas
questões relativas à construção do fazer literário, musical, pictórico etc. Mas
é claro que, enquanto disciplina que sistematiza os seus procedimentos, ela
exige uma iniciação técnica – e um jornal não é espaço para a discussão de tema
tão complexo. Hoje eu gostaria apenas de sugerir um ponto reflexivo, a partir
do livro Da imperfeição, de Greimas.
Nessa obra, o autor ensaia os modos de apreensão do sentido pelo corpo sensível
e coloca o estético como possibilidade de fratura
de uma rotina.
Simplificando,
poderíamos dizer que quando algo provoca essa quebra do óbvio, da mesmice em
que estamos imersos, promove o arrebatamento do indivíduo. O sujeito se esquece
de si, do próprio corpo com identidade e território delimitados no mundo. É
arrastado bruscamente pela experiência estética – que ocorre no contato
inesperado com a arte, ou mesmo com um elemento do cotidiano capaz de alcançar
essa dimensão de “estranhamento”, essa suspensão do previsível. No instante
encantatório, sujeito e objeto tornam-se um, fundem-se numa espécie de laço
primordial.
Há
um momento no livro em que Greimas cita Baudelaire, e talvez o comentário do
poeta seja decisivo à compreensão que desejamos: “o inesperado, a surpresa, o
assombro, são uma parte essencial e característica da beleza” – diz o autor de Les fleurs du mal. Aqui, o conceito de
beleza, ou de estético, não está agregado a nada em particular; pode existir
num poema, num som ou num rosto. Importa somente que haja esse impacto, o susto
de não prever nada – e, de repente, fundir-se a esse objeto de estesia, num átimo
de deslumbramento. No instante seguinte, a pessoa já volta a ser quem era antes,
recupera as sensações habituais e torna a pôr os pés no chão, por assim dizer.
Pode ser que ainda admire a obra e até tente explicar com palavras o efeito que
ela proporcionou. Mas o arrebatamento já se perdeu; o instante de união sagrado
passou, porque passou a surpresa, e ela não pode ser forjada uma segunda vez.
A
experiência, que acontece como primeira e última, ou “primúltima”, como Greimas
coloca, está destinada a libertar e reatar as continuidades do cotidiano. O
indivíduo põe-se à espera de novos “acidentes estéticos” e, se por um lado
incomoda saber que essas ocasiões são tão fortuitas, sob outra perspectiva é um
consolo ter a beleza como chance súbita de êxtase, dentro de uma vida
mesquinha. O fato de cada alumbramento ser tão fugaz acaba sendo um retrato de
nosso próprio destino humano, igualmente perecível, mas – por que negar? – surpreendente,
em tantas coisas mínimas.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site)
sábado, 27 de outubro de 2012
Semiótica para a vida
Trecho de Raúl Dorra em posfácio à edição de Da imperfeição, de Greimas:
"(...) o projeto da semiótica é - deveria ser - nada menos do que mudar a vida, ensinar aos homens, se não uma grande sabedoria, pelo menos um conjunto de pequenas astúcias - pequenas escapatórias que permitissem à beleza, inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia. A semiótica, segundo Greimas, estaria envolvida nesta utopia: fazer da pequenez cotidiana uma batalha silenciosa pela beleza, recuperá-la no mundo. (...) A arte, então, nos é necessária a cada minuto, e a semiótica também: aquela porque é o que pode formar a beleza diante dos nossos olhos maltratados pela feiúra, e esta porque é a que pode 'ressemantizar a vida', entregando-nos deste modo as chaves da beleza." (pp.122-3)
"(...) o projeto da semiótica é - deveria ser - nada menos do que mudar a vida, ensinar aos homens, se não uma grande sabedoria, pelo menos um conjunto de pequenas astúcias - pequenas escapatórias que permitissem à beleza, inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia. A semiótica, segundo Greimas, estaria envolvida nesta utopia: fazer da pequenez cotidiana uma batalha silenciosa pela beleza, recuperá-la no mundo. (...) A arte, então, nos é necessária a cada minuto, e a semiótica também: aquela porque é o que pode formar a beleza diante dos nossos olhos maltratados pela feiúra, e esta porque é a que pode 'ressemantizar a vida', entregando-nos deste modo as chaves da beleza." (pp.122-3)
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Os enamoramentos
Trecho da pág.288:
"Miguel não fazia muitas objeções a morrer, se é que se pode dizer isso, compreenda, de alguém a ponto de completar cinquenta anos e que tinha uma vida boa, com filhos pequenos e uma mulher que amava, quer dizer, sim, da qual estava enamorado, sim. Claro que era uma tragédia, como seria para qualquer um. Mas ele sempre esteve muito consciente de que se estamos aqui é por uma inverossímil conjunção de acasos e que não se pode protestar contra o seu fim. As pessoas acreditam que têm direito à vida. Mais até, as religiões e as leis de quase todos os lugares, quando não as Constituições, acolhem essa ideia, e no entanto ela não via as coisas desse jeito. Como é que a gente vai ter direito ao que não construiu nem ganhou? costumava dizer. Ninguém pode se queixar de não ter nascido, ou de não ter estado antes no mundo, ou de não ter estado sempre, logo por que alguém podia se queixar de morrer, ou de não estar depois no mundo, ou de não permanecer sempre nele? Uma coisa lhe parecia tão absurda quanto a outra. Ninguém faz objeções à sua data de nascimento, logo não teria por que fazer à da sua morte, igualmente devida a um acaso."
"Miguel não fazia muitas objeções a morrer, se é que se pode dizer isso, compreenda, de alguém a ponto de completar cinquenta anos e que tinha uma vida boa, com filhos pequenos e uma mulher que amava, quer dizer, sim, da qual estava enamorado, sim. Claro que era uma tragédia, como seria para qualquer um. Mas ele sempre esteve muito consciente de que se estamos aqui é por uma inverossímil conjunção de acasos e que não se pode protestar contra o seu fim. As pessoas acreditam que têm direito à vida. Mais até, as religiões e as leis de quase todos os lugares, quando não as Constituições, acolhem essa ideia, e no entanto ela não via as coisas desse jeito. Como é que a gente vai ter direito ao que não construiu nem ganhou? costumava dizer. Ninguém pode se queixar de não ter nascido, ou de não ter estado antes no mundo, ou de não ter estado sempre, logo por que alguém podia se queixar de morrer, ou de não estar depois no mundo, ou de não permanecer sempre nele? Uma coisa lhe parecia tão absurda quanto a outra. Ninguém faz objeções à sua data de nascimento, logo não teria por que fazer à da sua morte, igualmente devida a um acaso."
domingo, 15 de julho de 2012
O pensamento on the road
Trechos indispensáveis para "desgrilar" (apud J. Kerouac):
"Prisão é o lugar onde você promete a si mesmo o direito de viver."
"Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados, contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro irão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem - e quando terminarem de pensar já terão chegado onde querem, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim."
"Qual é a sua estrada, homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância."
"Prisão é o lugar onde você promete a si mesmo o direito de viver."
"Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados, contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro irão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem - e quando terminarem de pensar já terão chegado onde querem, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim."
"Qual é a sua estrada, homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância."
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Hijos sin hijos
Trecho do livro do Enrique Vila-Matas:
" - Ayer soñé que era un león - me dijiste una tarde en Sa Ràpita -. Todos mis sueños suelen ser grises, pero éste no lo era. Estaba tan convencido de que era un león, me parecia aquello tan natural, que si no llego a levantarme a cerrar una ventana que bateava, habría continuado así, sin percibir nada extraño. Hasta tal punto me parecía del todo natural que yo fuera un león. Sólo al levantarme o, mejor dicho, ya levantado, la visión de mi pijama a rayas, mi manera de andar, en fin, la cama misma, todo me condujo a darme cuenta de que era hombre y no león. Pero acababa de ser león, y eso no había ya quien pudiera cambiarlo. Más tarde puse mis codos sobre la mesa de estudio y volví a la reflexión. Volví a ser tu querido y estúpido misántropo. Pero no podia apartar de mí la idea de que había sido león." (Hijos sin hijos. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007, p.201)
" - Ayer soñé que era un león - me dijiste una tarde en Sa Ràpita -. Todos mis sueños suelen ser grises, pero éste no lo era. Estaba tan convencido de que era un león, me parecia aquello tan natural, que si no llego a levantarme a cerrar una ventana que bateava, habría continuado así, sin percibir nada extraño. Hasta tal punto me parecía del todo natural que yo fuera un león. Sólo al levantarme o, mejor dicho, ya levantado, la visión de mi pijama a rayas, mi manera de andar, en fin, la cama misma, todo me condujo a darme cuenta de que era hombre y no león. Pero acababa de ser león, y eso no había ya quien pudiera cambiarlo. Más tarde puse mis codos sobre la mesa de estudio y volví a la reflexión. Volví a ser tu querido y estúpido misántropo. Pero no podia apartar de mí la idea de que había sido león." (Hijos sin hijos. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007, p.201)
quinta-feira, 29 de março de 2012
Merleau-Ponty

Nestes dias chuvosos e melancólicos, eu mergulho na Fenomenologia da percepção, do Merleau-Ponty - e dela recolho alguns trechos memoráveis (as referências são da edição de 2006, da ed. Martins Fontes):
“(...) a fenomenologia não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’.” (p.1)
“Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem. (...) eu não poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la (...) a consciência [é] a condição sem a qual não haveria absolutamente nada, e o ato de ligação [é] como o fundamento do ligado.” (p.4)
“O real deve ser descrito, não construído ou constituído. (...) O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis. A percepção (...) é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” (pp.5-6)
“(...) não existe pensamento que abarque todo o nosso pensamento. O filósofo (...) é alguém que perpetuamente começa.” (p.11)
“(...) no final das contas, nós só temos estados de nós mesmos.” (p.13)
“(...) se eu procurasse, através de ‘critérios’, distinguir minhas percepções de meus sonhos, eu deixaria escapar o fenômeno do mundo. (...) o problema é agora (...) o de descrever a percepção do mundo como aquilo que funda para sempre a nossa ideia da verdade. (...) O mundo é aquilo que nós percebemos. (...) O mundo não é o que eu penso, mas aquilo que eu vivo.” (p.13-14)
“Kant mostrou (...) que a percepção interior é impossível sem percepção exterior, que o mundo, enquanto conexão dos fenômenos (...), é o meio para mim de realizar-me como consciência.” (p.15)
“Em um acontecimento considerado de perto, no momento em que é vivido, tudo parece caminhar ao acaso (...). Mas os acasos se compensam e eis que essa poeira de fatos se aglomera, desenha certa maneira de tomar posição a respeito da situação humana, desenha um acontecimento cujos contornos são definidos e do qual se pode falar. (...) Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser. (...) todos os períodos históricos aparecem como manifestações de uma única existência ou episódios de um único drama – do qual não sabemos se tem um desenlace. Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história.” (pp.17-8)
“A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. (...) a filosofia, assim como a arte, é a realização de uma verdade. (...) A racionalidade não é um problema, não existe detrás dela uma incógnita (...): nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências (...). O mundo e a razão não representam problemas; digamos, se se quiser, que eles são misteriosos, mas este mistério os define, na poderia tratar-se de dissipá-lo por alguma ‘solução’, ele está para aquém das soluções. A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de filosofia. Nós tomamos em nossas mãos o nosso destino, tornamo-nos responsáveis, pela reflexão, por nossa história, mas também graças a uma decisão em que empenhamos nossa vida, e nos dois casos trata-se de um ato violento que se verifica exercendo-se.” (pp.18-9)
“O vermelho e o verde não são sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto. (...) A análise descobre portanto, em cada qualidade, significações que a habitam.” (p.25)
“Se nós nos puséssemos a ver como coisas os intervalos entre as coisas, [veríamos] verdadeiramente um outro mundo.” (p.39)
segunda-feira, 19 de março de 2012
Bachelard líquido
Ontem e hoje li - com a leveza propícia - A água e os sonhos, de Gaston Bachelard. Faz toda a diferença, quando se lê teoria revestida de poética! Comprovem por alguns trechos deste livro:
"Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho." (p.5)
"(...) a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser. (...) O ser voltado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente." (pp.6-7)
"Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor fundamental." (p.9)
"Do homem, o que amamos acima de tudo é o que dele se pode escrever. O que não pode ser escrito merece ser vivido?" (p.11)
"Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial." (p.18)
"Em Bruges todo espelho é uma água dormente." (p.25)
"A vida real caminha melhor se lhe dermos suas justas férias de irrealidade." (p.25)
"Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho." (p.5)
"(...) a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser. (...) O ser voltado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente." (pp.6-7)
"Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor fundamental." (p.9)
"Do homem, o que amamos acima de tudo é o que dele se pode escrever. O que não pode ser escrito merece ser vivido?" (p.11)
"Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial." (p.18)
"Em Bruges todo espelho é uma água dormente." (p.25)
"A vida real caminha melhor se lhe dermos suas justas férias de irrealidade." (p.25)
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Sábato
Trechos de El escritor y sus fantasmas, do Ernesto Sábato:
"La condición más preciosa del creador. El fanatismo. Tiene que tener una obsesión fanática, nada debe anteponerse a su creación, debe sacrificar cualquier cosa a ella. Sin ese fanatismo no se puede hacer nada importante." (p.18)
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
domingo, 28 de agosto de 2011
Poesia inglesa
Fim-de-semana mergulhada em poesia de língua inglesa: Coleridge, com A balada do velho marinheiro (que me fez lembrar do albatroz do Baudelaire...) e um pouquinho de Byron, que compartilho com vocês. Estrofe 72 do canto III do Childe Harold:
I live not in myself, but I became
Portion of that around me; and to me
High mountains are a feeling, but the hum
Of human cities torture: I can see
Nothing to loathe in Nature, save to be
A link reluctant in a fleshly chain,
Classed among creatures, when the soul can flee,
And with the sky - the peak - the heaving plain
Of ocean, or the stars, mingle - and not in vain.
I live not in myself, but I became
Portion of that around me; and to me
High mountains are a feeling, but the hum
Of human cities torture: I can see
Nothing to loathe in Nature, save to be
A link reluctant in a fleshly chain,
Classed among creatures, when the soul can flee,
And with the sky - the peak - the heaving plain
Of ocean, or the stars, mingle - and not in vain.
sábado, 7 de maio de 2011
Um alumbramento

Um alumbramento, este Milagrário pessoal, do Agualusa. Cito só um trechinho, para deixar o sabor aflorar a vontade:
"Ao princípio, sim, sonhava com palavras, palavras já existentes, mas que nos seus sonhos assumiam significados muito diversos. Assim, por exemplo, pausa era um tipo de pássaro de asas breves e penas de um negror extremo. Cedo, uma dermatose na qual a pele se torna muito branca e fosforescente, brilhando no escuro. Amor, o nome que se dava à cor do céu momentos antes de o sol desaparecer no mar. Isto durou várias semanas, talvez meses. Júlio Branquinho construiu durante esse tempo uma língua que, sendo formalmente idêntica à nossa, com a mesma gramática e o mesmo léxico, expressava um mundo ao avesso. Ele dizia, vamos supor:
Vi um corvo planando lúgubre por sobre o milheiral.
E aquilo significava:
Encontrei um nefelibata hermafrodita escondido dentro do relógio de cuco."
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Cortázar

Um trecho retirado de Conversas com Cortázar, livro de entrevistas do E. G. Bermejo:
"Creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como homo ludens. E, em última instância, como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e ler literatura.
Essa biblioteca que você está vendo aqui me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Sou feliz quando escrevo e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata: felicidade pode ser exaltação, amor, cólera... Digamos, potencialização." (p.71)
quarta-feira, 9 de março de 2011
Macedonio Fernández

Estive lendo o Museu do Romance da Eterna e desta incrível obra extraio algumas passagens singulares. É recomendável ler cada uma e depois pôr-se a meditar sobre o componente irônico ou sábio (e talvez um se confunda com o outro):
"É indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo."
"O suicídio fez glorioso algum escritor medíocre (...). Porém mais precauções tomei contra o verdadeiro suicídio, que é viver depois de fracassar. Corrigir é quase todo o Sucesso, é o que faz algo genial. Corrigir, corrigir é outro grande Poder. (...) O suicídio não é corrigível."
"Assim, pois, à medida que escrevo, indago e espero fatos, da mesma forma que o leitor."
"E ele também iria embora com tal velocidade como se ir embora veloz fosse mais ir embora."
"Desde que sou autor conto com inveja o público das batidas. Às vezes sonho que o romance teve em certas passagens tal aglomeração de leitores que obstruíam o andamento da trama com risco de que os transes e catástrofes do interior do livro aparecessem em sua dianteira, como os atropelados."
"Quem experimenta por um momento o estado de crença de não existir e depois volta ao estado de crença de existir compreenderá para sempre que todo o conteúdo da verbalização ou noção de 'não ser' é a crença de não ser. (...) não se pode crer que não se existe, sem existir. Em suma: o existir é igualmente frequentado tanto pela crença do não existir quanto pela crença do existir."
"Todo personagem existe pela metade, pois nunca foi apresentado um do qual metade ou mais o autor não tomou emprestado de pessoas 'de vida'. Por isso há em todo personagem uma incomodidade sutil e uma agitação no 'ser' de personagem, como andam pelo mundo alguns humanos que um romancista usou parcialmente para personagem e que sentem uma incomodidade no 'ser' de vida. Algo deles está em romance, fantasiado em páginas escritas, e na verdade não se pode decidir onde estão mais.
Todos os personagens estão ligados ao sonhar ser que é sua propriedade, inacessível aos viventes, único material genuíno de Arte. Ser personagem é sonhar ser real."
"(...) os dois sentimentos que definem o Viajante de qualidade são a faculdade e o desejo de esquecer e o desejo de ser esquecido. O magnífico Esquecedor, completado com esta última faculdade de indiferença a ser esquecido e ainda com a valentia e soberba de querer que a imagem dele morra na mente dos outros, morte mais temida que a pessoa talvez porque todos sentimos que não há morte pessoal. A morte que há nos esquecimentos é a que nos levou ao erro de crer na morte pessoal. Mas essa crença é fragilíssima, por isso fazemos muito mais por não ser esquecidos que por não morrer."
"O consagrado futuro literário não acredita em, nem estima, outra posteridade a não ser a noite para cada dia, não terá sentido a urgência que sofriam antes os autores de escrever logo para ter mais posteridade julgadora: com a veleidade alcançada hoje pela posteridade o artista sobrevive a ela e no dia seguinte sabe se deve ou não escrever melhor ou se já o fez tão bem que deve conter-se na perfeição de escrever. Ou se já não lhe resta nada além da carreira literária mais difícil, a de leitor. A facilidade atual de escrever faz a escassez do legível e até suprimiu a injuriosa necessidade de que haja leitores: escreve-se por fruição de arte e no máximo para conhecer a opinião da crítica."
"(...) cada um sabe com toda a profundidade duas ou três verdades complexas, mas seus contatos de vida são mil aspectos mais, de modo que deixamos quase todas as partes de nossa vida às escuras (...). E assim vivemos em constante surpresa; quase tudo no inesperado."
"A loucura em arte é uma negação realista da arte realista. (...) Eu não crio personagens loucos, eu crio leitura louca, e precisamente com o fim de convencer por arte, não por verdade."
"(...) meus personagens são todos ligeiríssimos; no instante em que deixo de escrever, eles deixam de fazer; se eu não trabalho, fica tudo parado. (...) Outra vez me procuraram ao longo do Romance porque havia deixado Dom Luciano enfiando um braço na manga do sobretudo e ele já não aguentava as cãibras dessa postura. Quem mais se queixou foi o Presidente, pois interrompi redigi-lo quando ia soprar o fósforo com que acabava de acender seu cigarro, e passou a tarde sem fumar e se queimando."
"O leitor que não lê meu romance se não o souber todo antes, é o meu leitor, esse é artista (...): só aquele não busca uma solução é o leitor artista."
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
Hermann

Esses meus dias de virose têm tido ao menos um lado produtivo: mergulhei na leitura d'Os sonâmbulos, do Hermann Broch: indicação do Kundera, n'A arte do romance.
A trilogia deste autor austríaco realmente impressiona, mas não porque inove no estilo ou no tema. Ao contrário, a simplicidade do enredo (voltado às miudezas do comportamento humano) e a forma de narrar indicam a pretensão modesta de um bom contador de histórias. No fundo, porém, esta ambição revela-se grandiosa, porque não é nada fácil envolver um leitor. Broch consegue ainda outra proeza, ao lidar com assuntos que envolvem o ridículo. Se levarmos em consideração que a maioria das pessoas considera o cômico como algo trivial ou até irrelevante, vemos como o escritor atinge um ponto culminante. Suas intrigas enlaçam o leitor através da inteligência, não do apelo emotivo. É instigante acompanhar suas críticas implacáveis, seu olhar de feroz ironia sobre o mundo. Além disso, há passagens que se aproximam do sabor machadiano - confira-se, por exemplo, o trecho a seguir:
"Bertrand teve de sorrir e sorriu tão amável e simpaticamente que Joachim não pôde deixar de sorrir também. Assim se sorriram amistosamente e as suas almas acenaram uma à outra pelas janelas dos olhos, um instante, como dois vizinhos que nunca trocaram entre si um cumprimento e por acaso chegam ao mesmo tempo à sacada, contentes e embaraçados com essa coincidência e esse cumprimento inesperado." (p.29)
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