LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 31 de março de 2010

À beira do lar

Todas as janelas de minha casa têm cortina de algodão cru, com tramas de flores e quadrados. Gosto de pensar que ainda guardam o movimento das mãos que trançaram suas figuras labirínticas – porque foram mãos, e não mecanismos de uma fábrica. Vê-se de longe o tempo que levou cada peça: semanas, até meses, num ofício de criação rítmica. Quando o vento sopra cada cortina, é como se resgatasse a vida que lhe imprimiram aquelas mãos.

Em determinadas horas do dia, há sempre um gato que descansa na janela da frente, por onde se vê meu jardim de verde-sombra, com árvores que são um alívio a quem se aventura sob este céu de manhãs flamejantes. Por mais iluminado que esteja o tempo, entretanto, o corredor permanece úmido. Um corredor longo e silencioso, arejado pelo vitral antigo, posto como um olho neste pé-direito alto. O piso vermelho conduz à sala, toda composta de móveis rústicos – mesa, cristaleira, cadeira de balanço. O destaque talvez seja um sofá xadrez, pequeno fetiche do qual não me desfaço.

Há também, confesso, o quarto principal, com o colchão d’água. Serve para lembrar que somos feitos muito mais de líquido e, portanto, somos maleáveis. Além disso, nas noites em que o amado não está, o colchão permite que eu ainda repouse na sensação de verdes mares...

A sala de leitura e artes é onde se encontra o maior número de livros, quadros e esculturas, também espalhadas pelo resto da casa. O computador é inevitável, mas acabou fazendo um par alegre com a parede coberta de pastilhas: o desenho do pavão misterioso me fita, com seu perfil multicolor.

Da cozinha, ressalto o constante cheiro de café e caju. Ouve-se um ruído de rolha liberta em algumas noites, as mesmas em que se pode escutar uma conversa animada no puxado lateral da casa, um espaço que tradicionalmente se chama oitão. Pois é neste oitão que meus amigos ficam, em redes ou cadeiras, aproveitando o sossego, que é tão parecido com a paz.

Eu também fecho os olhos nos instantes de silêncio – dou mais um embalo na rede e esqueço que a realidade é outra, no apartamento com sua vizinhança anônima e urbana. Nessa breve sensação de alívio, penso que estou em minha casa imaginada, com brisa de mar e jeito de sertão. Novamente, acabo de pendurar as cortinas e agora observo sua dança, ao vento.


Tércia Montenegro

(texto publicado em 2008, na revista da Casa Cor)

2 comentários:

  1. Bom conhecer sua casa, imaginada ou não.
    E ler uma palavra há tanto esquecida e tão bela em seu significado e sonoridade: oitão.

    ResponderExcluir
  2. Eu, jaguaribano nascido em Fortaleza, gostei muito do seu texto. Enquanto conhecia sua casa, bebia uma saborosa cajuina natural, sem adição de água e açúcar.
    Agora, não sei como a Casa Cor a publicou. Não vi, em nenhum momento, você dizer que ter um aparelho eletrônico em cada cômodo é essencial ou que determinada cor é TUDO DE BOM. Excelente lapso!!!
    Ass.: Davi Cunha

    ResponderExcluir