LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ficar e partir

Texto do amigo, poeta e viajante Henrique Beltrão:

De mãos bem dadas, as almas são aladas. Falar de encontros e despedidas, chegando de Paris, onde ficou meu filho, e aportando em Nantes, nos braços da amada, me faz esboçar estas linhas e entrelinhas pensando em histórias irmanadas com a minha, vividas pelos leitores e leitoras – de poesia, de cartas, de relatos de viagem...


O homem habita a Terra prosaicamente e poeticamente ao mesmo tempo, diz Edgar Morin. E enquanto ela cumpre seu trajeto imerso no Universo, tanta gente de passagem! Viagem e viajante compõem a mesma paisagem: o viajante é a sua viagem. Sinto saudades do Brasil, das minhas amigas e dos meus amigos. A saudade é uma esperança pelo avesso. A saudade é a gente continuando, uns nos outros. Ela faz samba, faz versos, faz romance a cada novo abraço ou despedida. Cada encontro tem um grão de partida. Cada partida é grávida de reencontro.


Não na praia, mas em alto-mar, em noite de tempestade, se conhecem o mestre de jangada e os pescadores que vão com ele. Na beira da espuma, tanta espera a cada onda que vai e vem, tanta modinha cantada, chamando pelo seu bem. O amor entre as pessoas faz curvas no tempo e no espaço: gente que se ama, amigos e amigas têm entre si carinho impalpável e silêncios musicais; onde quer que estejam, permanecem juntos.


Tão longe estando, em meio a um outono gelado, me alcança a presença da minha gente ensolarada, em um convite para escrever, em um telefonema inesperado, em uma mensagem tão terna na tela do computador... Não estando ao alcance dos seus braços, resta-me o que desde sempre me resta, o fio das linhas com que componho minha breve passagem neste mundão que nos abraça.


Ah, refúgio meu, reino da Palavra, terra atemporal, momento sem lugar, aqui e agora sou todo teu. Fazei de mim o instrumento de vossa melodia que desafia os dias... E no momento mesmo em que a noite me açoite, onde houver silêncio que eu leve um grão de Poesia, magrinha talvez, alivia essa agonia sem perdão – de se saber de passagem na imensidão.


Foi-se com o tempo a lucidez de minha sanfoneira e pianista, grávida de mim um dia; foi-se com o tempo a visão de meu mestre poliglota, senhor dos genes de mim que já havia; foi-se a música com que ela me animava, foi-se a leitura com que ele me acalentava; foi-se tudo com a foice do pêndulo que oscila e garimpa a ilusão que vacila frente à incógnita adiante...


E assim contemplo os mapas e o calendário, a ampulheta e o metrônomo em coro a reger a fluidez sem fim em que escoo e ecoo meus versos avessos à sombra, vermelhos e tão simples, mas amigos da luz. Não serei eu um intruso de passagem, nas tripas do tempo plantado, teimando em continuar nas parcas linhas que o passado abrigou, que o presente acolhe e o futuro adivinha? Mas não sou o único – estou em boa companhia, a cada abraço ou aceno nosso, plenos de poesia – a poesia dos encontros e despedidas.


Nada pedir, nada esperar – tudo acolher, agradecer e passar. Sabedoria intangível, dirão vocês, eu sei, eu pressinto. Eu sinto que estas poucas sílabas são sinos a soar sem ciência do que será. Queiram me perdoar, eu preciso de falar. São as palavras meu abrigo; são vocês, leitores amigos, os destinatários destas correspondências que hão de se apagar, contudo a ecoar, a ecoar, a ecoar...



HENRIQUE BELTRÃO é poeta, radialista, professor da UFC. Autor de Vermelho e Simples; produtor e apresentador do Sem Fronteiras: Plural pela Paz e do Todos os Sentidos – Rádio Universitária FM.

Texto publicado no jornal O Povo e disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/vida-e-arte/2010/12/04/noticiavidaeartejornal,2073868/ficar-e-partir.shtml

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