A relação de um autor com aqueles que o leem é algo mítico. Eu, por exemplo, nunca acreditei inteiramente que houvesse alguém “depois” do meu texto, alguém que o manipulasse e interpretasse. Tinha a impressão de que minhas palavras permaneceriam solitárias, mesmo que fossem publicadas. Entretanto, às vezes surgem os leitores, confessos e expostos. Através de mensagens eletrônicas, eles se apresentam, quase sempre de maneira tão agradável que me constranjo por ter duvidado de sua existência.
Agora, nesse período de final de ano, recebi alguns pedidos para uma crônica natalina. Infelizmente, não vou cumprir a solicitação – primeiro, porque não tenho talento para falar desses assuntos, ditos “da hora”, e depois... bem, acho que é minha obrigação manter a liberdade temática, ao menos para lançar uma pitada de surpresa. Porém, não quero que os tais leitores-correspondentes se sintam rejeitados. Ao contrário, desejo homenageá-los, contando algumas de suas histórias.
Muitos dos que me mandam mensagens têm pendor confessional. Motivados pelo argumento do texto que leram, ou por outra inspiração particular, não resistem ao impulso de contar fatos íntimos e singulares. Eu, é claro, adoro! E lembro com especial delícia certos episódios que assim me foram narrados...
Há o caso de um rapaz que me escreveu do hospital onde se recuperava, após um acidente. O setor de traumatologia não era novidade para ele, segundo me informou: tinha pinos e placas metálicas por todo o corpo, e não havia parte que ele já não tivesse fraturado – exceto, talvez, o pescoço. O que ele no início considerou um infortúnio transformou-se em estilo de vida. Envolver-se em acidentes era um hábito que lhe dava a propriedade de fazê-lo mais corajoso.
Uma jovem, meses atrás, me passou uma mensagem poética, dizendo que gostava de ler minhas crônicas pela manhã, enquanto ouvia o galo cantar na vizinhança. Dizia ser aquele um privilégio raro, numa cidade tão agitada quanto Fortaleza. Achei tudo muito bonito e a parabenizei; não suspeitava que semanas depois ela me escreveria novamente, para desabafar sua revolta. Pois encontrara a vizinha do tal quintal bucólico e, ao conversar sobre a atmosfera pacata que o canto do galo criava, descobriu que o som era apenas uma gravação em disco. Um médico o recomendara à vizinha, para lhe acalmar os nervos...
Recordo ainda a história do homem que, traído pela esposa, resolve terminar o casamento. Como símbolo de sua raiva, engole a aliança, com o objetivo de depois deixar na casa da ex “uma certa encomenda” que seu organismo produziria. Lá entregaria o pacote, decentemente vedado – e, quando aberto, primeiro se veria um bilhete, com a inscrição: “Aqui dentro está minha aliança, no lugar para onde foi o nosso amor”. Mas a performance escatológica não chegou a acontecer: o criativo esposo morreu após longo sofrimento, vítima de obstrução intestinal. Quem me escreveu sobre isso foi sua filha, um verdadeiro talento no humor negro...
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/12/22/noticiaopiniaojornal,2081000/historias-de-leitores.shtml)
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