Pinço estes fragmentos do diário de bordo da viagem a Brasília, quando acompanhei alguns filmes exibidos no festival de cinema:
Dia 25
[sobre o filme Transeuntes, de Eryk Rocha]
O grande aspecto deste filme é a fotografia, sempre com um zoom poderoso, que se detém na textura e geometria dos rostos, sobretudo os envelhecidos. O PB ressalta a saturação, e o hiperrealismo das imagens tem sua violência suavizada pelo ritmo lento da maior parte das ações. Dois pontos altos: a figura do profeta num apocalíptico otimismo, com performance e feitio que lembraram o próprio Glauber (Terra em transe e Transeuntes são, afinal, da mesma lavra) e a cena no ossário da catedral do Rio de Janeiro.
Dia 26
Vi uns curtas muito ruins hoje, mas, em compensação, Braxília, sobre o Nicolas, foi ótimo. Agora, o longa da noite, Os residentes, mais parecia um conjunto de performances do que um filme. Sempre acho videoarte uma coisa monótona, e dessa vez a sensação não foi diferente. Houve uma cena interessante, quando se cria um bigode feito com fios de pêlo pubiano de uma garota. O namorado dela, cheio de uma retórica "contra a vida normal", corta e monta os pêlos, após ter aparado o próprio bigode, no meio de uma briga que leva a essa "prova de amor". A garota então fixa em si mesma o bigode, que é falso, mas feito com seus pêlos autênticos: é um símbolo de uma masculinidade forjada. Entretanto, nem todas as performances são proveitosas. 90% talvez seja rebeldia inútil - e algumas não têm nem mesmo finalidade de causar o riso. São rupturas irresponsáveis, porque não sabem o que querem atingir. O estranho pelo estranho não significa nada.
Dia 27
Destaque para o belo e sugestivo "Últimos dias" e para "Traz outro amigo também" (um curta divertido, que mostra como se pode conciliar narrativa tradicional e criatividade).
Os filmes da noite não foram lá muito instigantes. O longa, "O céu sobre os ombros", teve uns momentos bons, mas no geral deu a impressão de um conjunto de fragmentos reunidos ao acaso. Por que será que os filmes atuais dão essa ideia, de gratuidade ou ausência de mensagem? Não procuro moral, mas me sinto confortável quando reconheço o tema de uma obra de arte... Sem isso, fica difícil interpretar e - até mesmo - apreciar.
Dia 28
Os filmes da noite foram razoavelmente bons, no estilo daqueles que deixam uma boa sensação mas em breve serão esquecidos - por isso, nem vale a pena citá-los. Eis porque a arte tem sempre que ultrapassar o nível das convenções ou das expectativas "normais" (mas isso não significa valer-se da rebeldia pela rebeldia)...
Dia 29
Manhã no hotel, lendo Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin. Se Dostoiévski foi mesmo esse gênio perturbado, tenho pena da pobre Anna Grigoriévna. Para mim, não há talento que justifique uma loucura maldosa, ou vice-versa. Se o artista é inconvivível e assim quer se manter, por razões de impulso criador, tem a obrigação moral de isolar-se; não pode arrastar um(a) companheiro(a) às crueldades do seu humor. Nenhuma obra confere o perdão a isso.
O hotel é bastante agradável; escrevo sentada numa poltrona xadrez, sob um abajur elegante. Há pouco lia à beira da piscina (pena que esqueci o maiô). A paisagem do meu 13° andar é muito linda.
(...)
Penso que um festival de cinema é semelhante a um concurso literário: cerca de 80 a 90% são dispensáveis. O fato de ser uma arte muito mais trabalhosa e cara não inibe os medíocres; como eles são a regra, estarão sempre em todos os lugares, e em maior quantidade. Os criativos permanecem exceção - mas o cinema lembra que não é preciso somente uma ideia (ou história). É necessário manipular bem a técnica, a linguagem.
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