As afinidades eletivas
por Urik Paiva
Os
gritos dos galos partidários rasgam a manhã para advertir: estamos
em período eleitoral. As militâncias soam militares no fazer
levantar da cama e pôr o mau humor na rua para ouvir aqueles
jingles, os quais acredito terem sido compostos por
alguém como Tom Jobim; receber panfletos com a bela cara de
políticos que mais poderiam ser concorrentes a Mister Suécia; ser
quase fatalmente atravessado por uma carreata ou bicicleata em que os
condutores são pessoas tão felizes que é de se acreditar que
tenham experimentado todo o Kama Sutra antes de sair de casa; ser
abduzido nas esquinas por bandeiras gigantes que ficariam frouxas
enrolando a Catedral; ter os tímpanos sodomizados por discursos
megafônicos que deixariam Beethoven ainda mais surdo, ele que era
completamente surdo; e escutar um sem tamanho absurdo de promessas
que talvez envolvam a devolução do Paraíso a Adão e Eva.
Dois
amigos votam em candidatos diferentes: perseguem-se pelas ruas
empunhando peixeiras; quebram os dentes um do outro com exemplares
d’O Príncipe, de Maquiavel. Marido e mulher possuem
divergências políticas: cerceiam-se de contato íntimo enquanto não
chegam a um denominador eleitoral comum; praguejam-se de Margaret
Thatcher e Karl Marx dependendo de como analisam o excedente de
produção.
Loirinha
fritada pelo sol, Fortaleza está aquartelada pelo que há de mais
dantesco na democracia. Nós, os misantropos políticos, que sempre
votamos nulo para rainha do colégio e hoje não sabemos quem são os
síndicos de nossos próprios prédios, sofremos o bullying de
outubro - esse, sim, o mais cruel dos meses – que se aproxima.
Busco
uma evasão possível diante das agruras de um tempo que poderia ser
belo em vez de bélico. Ainda há rei em Pasárgada? Porque se houver
prefeito, há também campanha e não será possível escapar do
perturbador bochincho eleitoral.
A
solução para meu ranço vem no correr de um exercício à la
realismo fantástico. Dentro da biblioteca, o mais prolífico dos
refúgios, sou o (e)leitor que recruta seu rol de afins. Tire o seu
título de eleitor do caminho que eu quero passar com meu relicário
ficcional.
A
overture de um intrigante fenômeno mental se dá quando penso
em Iracema, signo literário de nossa terra, oferecendo-se à
governança da capital cearense. O Partido Tabajara poderia, caso
deixe de lado as desavenças políticas, se unir a toda a nação
Tupi e conseguir bastante tempo de televisão para o horário
eleitoral. Os mais conservadores não vão aprovar a inclinação da
virgem à liberação do consumo de alucinógenos, como o Segredo da
Jurema. Enquanto os mais liberais considerarão um retrocesso a
militarização da Guarda Municipal com arco e flecha.
A
figura da personagem de José de Alencar se desfaz em minha mente,
dando lugar ao discurso inflamado de uma Maria Moura sob o sol da
Praça do Ferreira a instigar toda a sorte de mulheres a um levante
feminista derradeiro, para aflição do eleitorado masculino. Para
deixar a chapa um tanto mais polida, mas sem perder o caráter
enfático, o arranjo partidário poderia incluir a Capitu de Machado
de Assis, sendo a dissimulação dos olhos de ressaca um fenômeno
não raro na política. A mulher de Bentinho, através da condição
do esposo, poderia alavancar muitos votos naquela região populosa do
José Walter, cujos chavelhos dos homens são vigorosos indicativos
de um determinado status quo.
De
Machado, ainda cabe considerar, para nosso inusitado pleito, Simão
Bacamarte, defensor pétreo do equilíbrio e da normalidade. Entre
suas propostas, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPES), variando-os tematicamente: o CAPES para os perigosamente
descuidados, para os excessivamente gulosos, para compulsivos
sexuais, para leitores de Paulo Coelho, para pretendentes a
ascensoristas etc.
Retrocedendo
aos primórdios do cânone literário ocidental, temos, do Partido
Homérico, o heroico Odisseu, que promete construir faixas de
trânsito exclusivas para quem está voltando de Ítaca e acabar com
o problema da superlotação do transporte público com enormes
cavalos de madeira que comportariam toda a massa produtiva. Não
teríamos o Cavalo de Tróia, e sim o Cavalo do Mucuripe, o Cavalo do
Bom Jardim, o Cavalo da Serrinha etc.
Um
mau candidato seria o sanguinário príncipe Hamlet, que nem numa
surpreendente conversão ao republicanismo poderia dar certo como
nosso alcaide, haja a quantidade de interesses pessoais que arrolaria
à máquina administrativa. O que daria muito sentindo à afirmação:
Há algo de podre no Município de Fortaleza. Mas não restam dúvidas
de que Horácio, sempre lúcido, pudesse ocupar com louvor alguma
secretaria.
Também
não seria acerto da cidade eleger Pinóquio como prefeito. Além de
imaturo e ambicioso, este cara de pau possui uma nociva
apetência ao embuste. Talvez mentisse tanto que seu nariz crescesse
do Paço Municipal ao Terminal do Siqueira.
O
caso Lewis Carrol é intrigante. Se por um lado há a débil e
inexperiente Alice, boa de coração, mas cujo programa de governo é
o mais fora da realidade possível, apresentando uma cidade
inexequível, tem-se por outro o Coelho Branco, cuja promessa de
terminar todas as obras no tempo certo soaria agradável ao eleitor
alencarino.
Compondo
a lista dos candidatos mais sérios e comprometidos, há o
surpreendente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de
Corbentraz e Sura, mais conhecido como O Cavaleiro Inexistente, que,
segundo o romance de Italo Calvino, era o mais austero dos paladinos
de Carlos Magno. Sua característica marcante é que, dentro da
deslumbrante armadura branca, ele simplesmente não existe. Trocando
o metal da armadura pelo linho do burocrático paletó, o nosso
Prefeito Inexistente faria uma gestão de visível competência
fiscal, digna do panteão de honra do Portal da Transparência.
Literalmente.
Do
Novo Testamento para as urnas de nossa capital. Jesus Cristo é de
longe o campeão das promessas miraculosas. Caro eleitor, cara
eleitora, este homem não vai transformar a rua da sua comunidade na
Champs-Élysées, não vai despoluir o canal do
seu bairro andando por cima das águas, não vai liberar espaço no
São João Batista ressuscitando os mortos, não vai multiplicar seu
mercantil, não vai dobrar
sua cerveja no bar. Este homem, assim seja, talvez nem passe das
prévias com Barrabás.
Bem
à esquerda do espectro político, Oliver Twist garante governar para
os miseráveis, ampliando o acesso a programa de inclusão social, o
que deixará a classe média da Regional II um tanto descontente.
Além disso, seu primeiro escalão seria todo composto por outros
órfãos de Dickens.
À
deriva em pensamentos surreais, imagino um jovem Werther que,
abismado com o déficit público, cometeria suicídio nos primeiros
dias de mandato. Mil e uma propostas para sobreviver em Fortaleza,
este poderia ser o programa de governo de Sherazade. O Pequeno
Príncipe, aparentemente ingênuo e pueril, talvez seja na verdade um
corrupto, fazendo valer a máxima “O essencial é invisível à
prestação de contas”. Caso chegasse à chefia do Executivo, o
autocomplacente Leopold Bloom criaria mais um feriado municipal, o
Bloomsday, em 16 de junho. Hannibal Lecter promete acabar com o
problema da fome em Fortaleza. E, seja lá qual for o resultado das
eleições, Emma Bovary implora a nomeação do Doutor Charles, seu
marido, como plantonista do IJF, deixando-o pouquíssimo tempo em
casa.
Agradando
a todas as classes sociais, a Mulher do Médico, aquela que
permaneceu enxergando diante da terrível epidemia de cegueira
relatada por José Saramago, pode ser a grande surpresa destas
eleições. Mantendo-se lúcida em meio à aflição coletiva, ela
prestou-se, como servidora empossada pelas circunstâncias, a guiar
os cegos pelos dissabores de um mundo autoconfinado. Mas nós não
somos cegos, retrucariam os opositores da candidatura, que teriam
apenas um constrangedor silêncio como réplica.
Chegamos
ao fim do conclave fictício com a condenação a candidato do
desavisado Joseph K., o bancário que, em O Processo, é
acusado de cometer um crime a ele desconhecido. O personagem talvez
expressasse o mesmo assombro ao ser avisado de que foi repentinamente
declarado, por ampla maioria democrática, prefeito da cidade, sem
nem mesmo saber que estava concorrendo. A democracia tem
dessas arbitrariedades.
Curiosamente,
é Kafka quem me retira de minha própria invenção, antes mesmo do
findar do pleito, e me faz retornar a Fortaleza real, mas não menos
absurda que esta outra de dentro do papel. Não seriam essas duas
Fortalezas uma só? No fim das contas literárias, deixo à cidade a
responsabilidade do espetáculo narrativo de contar a si mesma.
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Confiram também no blog do autor, abstrato armado)
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