LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

domingo, 7 de outubro de 2012

As afinidades eletivas, por Urik Paiva

As afinidades eletivas
por Urik Paiva

Os gritos dos galos partidários rasgam a manhã para advertir: estamos em período eleitoral. As militâncias soam militares no fazer levantar da cama e pôr o mau humor na rua para ouvir aqueles jingles, os quais acredito terem sido compostos por alguém como Tom Jobim; receber panfletos com a bela cara de políticos que mais poderiam ser concorrentes a Mister Suécia; ser quase fatalmente atravessado por uma carreata ou bicicleata em que os condutores são pessoas tão felizes que é de se acreditar que tenham experimentado todo o Kama Sutra antes de sair de casa; ser abduzido nas esquinas por bandeiras gigantes que ficariam frouxas enrolando a Catedral; ter os tímpanos sodomizados por discursos megafônicos que deixariam Beethoven ainda mais surdo, ele que era completamente surdo; e escutar um sem tamanho absurdo de promessas que talvez envolvam a devolução do Paraíso a Adão e Eva.

Dois amigos votam em candidatos diferentes: perseguem-se pelas ruas empunhando peixeiras; quebram os dentes um do outro com exemplares d’O Príncipe, de Maquiavel. Marido e mulher possuem divergências políticas: cerceiam-se de contato íntimo enquanto não chegam a um denominador eleitoral comum; praguejam-se de Margaret Thatcher e Karl Marx dependendo de como analisam o excedente de produção.

Loirinha fritada pelo sol, Fortaleza está aquartelada pelo que há de mais dantesco na democracia. Nós, os misantropos políticos, que sempre votamos nulo para rainha do colégio e hoje não sabemos quem são os síndicos de nossos próprios prédios, sofremos o bullying de outubro - esse, sim, o mais cruel dos meses – que se aproxima.

Busco uma evasão possível diante das agruras de um tempo que poderia ser belo em vez de bélico. Ainda há rei em Pasárgada? Porque se houver prefeito, há também campanha e não será possível escapar do perturbador bochincho eleitoral.

A solução para meu ranço vem no correr de um exercício à la realismo fantástico. Dentro da biblioteca, o mais prolífico dos refúgios, sou o (e)leitor que recruta seu rol de afins. Tire o seu título de eleitor do caminho que eu quero passar com meu relicário ficcional.

A overture de um intrigante fenômeno mental se dá quando penso em Iracema, signo literário de nossa terra, oferecendo-se à governança da capital cearense. O Partido Tabajara poderia, caso deixe de lado as desavenças políticas, se unir a toda a nação Tupi e conseguir bastante tempo de televisão para o horário eleitoral. Os mais conservadores não vão aprovar a inclinação da virgem à liberação do consumo de alucinógenos, como o Segredo da Jurema. Enquanto os mais liberais considerarão um retrocesso a militarização da Guarda Municipal com arco e flecha.

A figura da personagem de José de Alencar se desfaz em minha mente, dando lugar ao discurso inflamado de uma Maria Moura sob o sol da Praça do Ferreira a instigar toda a sorte de mulheres a um levante feminista derradeiro, para aflição do eleitorado masculino. Para deixar a chapa um tanto mais polida, mas sem perder o caráter enfático, o arranjo partidário poderia incluir a Capitu de Machado de Assis, sendo a dissimulação dos olhos de ressaca um fenômeno não raro na política. A mulher de Bentinho, através da condição do esposo, poderia alavancar muitos votos naquela região populosa do José Walter, cujos chavelhos dos homens são vigorosos indicativos de um determinado status quo.

De Machado, ainda cabe considerar, para nosso inusitado pleito, Simão Bacamarte, defensor pétreo do equilíbrio e da normalidade. Entre suas propostas, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPES), variando-os tematicamente: o CAPES para os perigosamente descuidados, para os excessivamente gulosos, para compulsivos sexuais, para leitores de Paulo Coelho, para pretendentes a ascensoristas etc.

Retrocedendo aos primórdios do cânone literário ocidental, temos, do Partido Homérico, o heroico Odisseu, que promete construir faixas de trânsito exclusivas para quem está voltando de Ítaca e acabar com o problema da superlotação do transporte público com enormes cavalos de madeira que comportariam toda a massa produtiva. Não teríamos o Cavalo de Tróia, e sim o Cavalo do Mucuripe, o Cavalo do Bom Jardim, o Cavalo da Serrinha etc.

Um mau candidato seria o sanguinário príncipe Hamlet, que nem numa surpreendente conversão ao republicanismo poderia dar certo como nosso alcaide, haja a quantidade de interesses pessoais que arrolaria à máquina administrativa. O que daria muito sentindo à afirmação: Há algo de podre no Município de Fortaleza. Mas não restam dúvidas de que Horácio, sempre lúcido, pudesse ocupar com louvor alguma secretaria.

Também não seria acerto da cidade eleger Pinóquio como prefeito. Além de imaturo e ambicioso, este cara de pau possui uma nociva apetência ao embuste. Talvez mentisse tanto que seu nariz crescesse do Paço Municipal ao Terminal do Siqueira.

O caso Lewis Carrol é intrigante. Se por um lado há a débil e inexperiente Alice, boa de coração, mas cujo programa de governo é o mais fora da realidade possível, apresentando uma cidade inexequível, tem-se por outro o Coelho Branco, cuja promessa de terminar todas as obras no tempo certo soaria agradável ao eleitor alencarino.

Compondo a lista dos candidatos mais sérios e comprometidos, há o surpreendente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, mais conhecido como O Cavaleiro Inexistente, que, segundo o romance de Italo Calvino, era o mais austero dos paladinos de Carlos Magno. Sua característica marcante é que, dentro da deslumbrante armadura branca, ele simplesmente não existe. Trocando o metal da armadura pelo linho do burocrático paletó, o nosso Prefeito Inexistente faria uma gestão de visível competência fiscal, digna do panteão de honra do Portal da Transparência. Literalmente. 
 
Do Novo Testamento para as urnas de nossa capital. Jesus Cristo é de longe o campeão das promessas miraculosas. Caro eleitor, cara eleitora, este homem não vai transformar a rua da sua comunidade na Champs-Élysées, não vai despoluir o canal do seu bairro andando por cima das águas, não vai liberar espaço no São João Batista ressuscitando os mortos, não vai multiplicar seu mercantil, não vai dobrar sua cerveja no bar. Este homem, assim seja, talvez nem passe das prévias com Barrabás.

Bem à esquerda do espectro político, Oliver Twist garante governar para os miseráveis, ampliando o acesso a programa de inclusão social, o que deixará a classe média da Regional II um tanto descontente. Além disso, seu primeiro escalão seria todo composto por outros órfãos de Dickens.

À deriva em pensamentos surreais, imagino um jovem Werther que, abismado com o déficit público, cometeria suicídio nos primeiros dias de mandato. Mil e uma propostas para sobreviver em Fortaleza, este poderia ser o programa de governo de Sherazade. O Pequeno Príncipe, aparentemente ingênuo e pueril, talvez seja na verdade um corrupto, fazendo valer a máxima “O essencial é invisível à prestação de contas”. Caso chegasse à chefia do Executivo, o autocomplacente Leopold Bloom criaria mais um feriado municipal, o Bloomsday, em 16 de junho. Hannibal Lecter promete acabar com o problema da fome em Fortaleza. E, seja lá qual for o resultado das eleições, Emma Bovary implora a nomeação do Doutor Charles, seu marido, como plantonista do IJF, deixando-o pouquíssimo tempo em casa.

Agradando a todas as classes sociais, a Mulher do Médico, aquela que permaneceu enxergando diante da terrível epidemia de cegueira relatada por José Saramago, pode ser a grande surpresa destas eleições. Mantendo-se lúcida em meio à aflição coletiva, ela prestou-se, como servidora empossada pelas circunstâncias, a guiar os cegos pelos dissabores de um mundo autoconfinado. Mas nós não somos cegos, retrucariam os opositores da candidatura, que teriam apenas um constrangedor silêncio como réplica.

Chegamos ao fim do conclave fictício com a condenação a candidato do desavisado Joseph K., o bancário que, em O Processo, é acusado de cometer um crime a ele desconhecido. O personagem talvez expressasse o mesmo assombro ao ser avisado de que foi repentinamente declarado, por ampla maioria democrática, prefeito da cidade, sem nem mesmo saber que estava concorrendo. A democracia tem dessas arbitrariedades.

Curiosamente, é Kafka quem me retira de minha própria invenção, antes mesmo do findar do pleito, e me faz retornar a Fortaleza real, mas não menos absurda que esta outra de dentro do papel. Não seriam essas duas Fortalezas uma só? No fim das contas literárias, deixo à cidade a responsabilidade do espetáculo narrativo de contar a si mesma. 
 
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Confiram também no blog do autor, abstrato armado

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