Este é o segundo livro que leio de hugo mãe - e decididamente o começo é bem mais espinhoso do que o início d'a máquina de fazer espanhóis. Demora um pouquinho para a gente se acostumar à linguagem, roseana e - problema para os que têm mania de realismo - inverossímil, uniforme entre os personagens, com uma menor densidade poético-filosófica, se comparamos com a máquina. Mas todas essas diferenças são vantajosas para o autor, porque provam o seu ecletismo, a sua capacidade de transcender aquela afirmação que diz que todo escritor escreve sempre o mesmo livro, disfarçado. Com hugo mãe, isso não acontece. A trama d'o remorso é medieval e fantástica, sem a atmosfera lírica que vemos n'a máquina. Aqui, ao contrário, a brutalidade do sexo e da violência caminham junto pelos meandros de assombro e feitiço. Há momentos em que o estômago se revira, diante de tantos maus tratos que sofrem as mulheres desta história. Veja-se o trecho abaixo, por exemplo:
"e, quando a ermesinda veio, entrou no nosso lado da casa, solta das demoras de dom afonso, preparada para se explicar, sabia eu, e surpresa com a minha aparição gaguejou algo que não ouvi, tão grande foi o ruído de minha mão na sua cara, e tão rápido lhe entornei o corpo ao contrário e lhe dobrei o pé esquerdo em todos os sentidos. que te saiam os peidos pela boca se me voltas a encornar, definharás sempre mais a cada crime, até que sejas massa disforme e sem diferença das pedras ou das merdas acumuladas, e coisa que te entre pelas partes há de cair e cozinhar-se para jantar. que em verdade, se filho algum lhe saísse de um homem que não eu, haveria de servi-lo ao jantar para a sua própria boca. e assim ficou revirada no chão, esfregada de dores corpo todo, a respeitar-me infinitamente para se salvar de morrer, e como me deitei fiquei, surdo de ouvido e de coração, que o amor era coisa de muito ensinamento. que pena se estropiasse tão nova e depressa como foi chegada à vida do casamento. como eu preferiria que se mantivesse perfeita, para num todo me atrair de fantasias. mas poupá-la da morte era o único que me permitia, tão louco de paixão estava, tão grande amor lhe tinha, não poderia matá-la, de outro modo acabaria também de remorsos." (p.53)
Se um grande artista é aquele capaz de manobrar o seu espectador para que sinta as emoções que deseja lhe incutir, merece reverência hugo mãe, pois de um livro para outro nos oferece as mais díspares sensações que a palavra pode trazer.
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