Para Cecília, filha dos meus queridos amigos Sérgio e Roberta: que seja bem-vinda!
LIVROS E BICHOS
Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
Os músicos de Denver
OS
MÚSICOS DE DENVER
Na sequência da viagem ao
México, arrisquei-me pelos Estados Unidos somente para pisar em Denver, terra
dos beats.
Mas o grande motivo não era palmilhar trilhas de artistas boêmios e
santificados pelo delírio aventureiro, como Kerouac. Eu pesquisara sobre um
local esquisito, chamado The cage’s sounds, uma espécie de
viveiro para aves adestradas, que ali interpretam artistas famosos. Cada
pássaro imita um instrumento, conforme sua predisposição natural. Um deles, por
exemplo, garante o som de trompete ao estilo de Andy Diagram, da clássica banda
dos anos 80 The Pale Fontains. Há ainda guitarras idênticas às de Blixa
Bargeld, do The Bad Seeds, além do baixo pulsante de Sooyoung Park, da Bitch
Magnet, e piano igual ao de Keith Jarrett. Tudo isso em Denver, cidade
mágica para os bichos musicais, quase como aquela outra, Bremen, da fábula
milenar...
Com tanta propaganda, eu
e o amado consideramos aquela atração irresistível. Chegamos bem cedo; The
cage’s sounds mal havia
começado a formar uma fila de espectadores diante da sala onde aconteciam as
audições. O programa do dia anunciava um pássaro que imitaria o vocal sibilante
de Jónsi, do Sigur Rós, por dez minutos, e em seguida um outro, disposto a
fazer o som do baterista John Ribombayne, da banda Baú Metálico, por quinze
minutos.
O sol estava a pino, e
certamente iríamos esperar um bocado na fila, contando com o horário previsto e
os naturais atrasos dos “artistas”. Aliás, eu começava a pensar nos detalhes
daquele show – como seria convencer os pássaros a iniciar uma canção? Será que
havia maestros dando a “deixa”, ou músicos humanos acompanhando o
instrumentista principal? Sobretudo, eu me preocupava com o método de
adestramento, inegavelmente torturante, com um bicho condenado a ouvir milhares
de vezes certa música, até conseguir cantá-la. E quando ele errava, ou esquecia
uma parte – o que o seu treinador fazia? Eu repassava mentalmente relatos de
Skinner e Pavlov, sob o calor escaldante. Enquanto isso, dúzias de crianças
corriam ou plantavam bananeira nas imediações; elas prometiam um público
inquieto, entrando na sala junto com seus pais, aquelas duplas de americanos
rosados, suando em bagas, sob chapéus e bonés.
Imaginei que era o
efeito de uma desidratação alucinante, quando ouvi o amado dizer: “Vamos
embora”. Afinal, era ele o principal interessado naquele espetáculo de homenagem
musical; ele colecionava os
vinis, pôsteres e versões de todos aqueles artistas, tocadas em aparelhos de
som sensibilíssimos... Se havia alguém capaz de ouvir os pássaros e julgá-los
em sua fidelidade sonora, era ele – e, de repente, estava desistindo? Por qual
motivo? Achei que fosse ouvir algo sobre o calor ou o tempo de espera, mas o
amado apontou um detalhe no programa musical. Ali estava a informação de que Ribombayne
era inglês, e não irlandês, conforme fiquei sabendo. Um erro desse tipo punha
tudo em descrédito – e assim deixamos Denver e seus pássaros, numa frustração
de turistas que atravessam um deserto.
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site.)
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
M. Blecher
Amigos,
Por uma dessas confluências cósmicas e virtuais, eu estava vasculhando a internet à procura de traduções do romance de M. Blecher, citado na postagem abaixo, e encontrei o blog do Fernando Klabin, brasileiro que mora na Romênia (e tem uma pousada em Draguseni) . Ali, achei a referência de versos do M. Blecher, traduzidos pelo Klabin, na Revista Literária em Tradução n° 1. Recomendo a leitura pelo site abaixo:
http://www.notadotradutor.com/revista1.html
Entretanto, eu ainda queria saber do romance! Decidi, portanto, escrever ao tradutor - e ele acaba de me informar que a tal obra sairá em 2013, pela Cosac Naify! Excelente notícia: M. Blecher reviverá em português! Comemoremos!
Em tempo: Fernando Klabin tem outras traduções do romeno que valem a pena demais. É o caso de No cume do desespero, do Cioran, que saiu pela Hedra e já vou encomendar...
Por uma dessas confluências cósmicas e virtuais, eu estava vasculhando a internet à procura de traduções do romance de M. Blecher, citado na postagem abaixo, e encontrei o blog do Fernando Klabin, brasileiro que mora na Romênia (e tem uma pousada em Draguseni) . Ali, achei a referência de versos do M. Blecher, traduzidos pelo Klabin, na Revista Literária em Tradução n° 1. Recomendo a leitura pelo site abaixo:
http://www.notadotradutor.com/revista1.html
Entretanto, eu ainda queria saber do romance! Decidi, portanto, escrever ao tradutor - e ele acaba de me informar que a tal obra sairá em 2013, pela Cosac Naify! Excelente notícia: M. Blecher reviverá em português! Comemoremos!
Em tempo: Fernando Klabin tem outras traduções do romeno que valem a pena demais. É o caso de No cume do desespero, do Cioran, que saiu pela Hedra e já vou encomendar...
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Sempre a mesma neve
Estou quase terminando de ler Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, da Herta Müller, uma das autoras que para mim tem qualidade incondicional: mergulhar num livro dela é sempre garantia de aprendizado ou embevecimento estético. Esta obra, por exemplo: poderia ser apenas um apanhado de textos vários, reflexões sobre literatura e política reunidas num volume justificado pelo fato de que a escritora ganhou o Nobel. Mas, no caso da Herta, uma publicação dificilmente seria "raspa do tacho" com o único propósito de atender ao mercado. O que temos em Sempre a mesma neve... são testemunhos que oscilam do ficcional para a realidade, sem jamais cair na planfetagem - apesar de em inúmeros momentos a autora acusar diretamente a ditadura socialista de Ceausescu, o universal humano está presente em cada linha, e mesmo um leitor distante daquela experiência pode compreendê-la e se comover. Além disso, o livro traz momentos de "bastidores" da escrita de Depressões e Tudo o que tenho trago comigo, outras obras da Herta. É maravilhoso ver as circunstâncias que motivaram essas histórias, e isso não como simples curiosidade; a autora fornece verdadeiras lições de literatura, ao mostrar suas técnicas com o uso das metáforas. Como se não bastasse, nos capítulos de Sempre a mesma neve... ainda aprendemos sobre as línguas alemã e romena, e temos notícia de autores longínquos para o público brasileiro. É o caso de M. Blecher, com o seu Da irrealidade imediata, lamentavelmente nunca traduzido para nós (chuif!).
sábado, 18 de agosto de 2012
quarta-feira, 15 de agosto de 2012
A casa de Kahlo
A
CASA DE KAHLO*
Já comentei na crônica
anterior, quinze dias atrás, que a Cidade do México é um esplendor em museus –
mas, em meio a tantas opções, a Casa Azul (que era residência da pintora Frida
Kahlo) ainda se destaca. Faz toda a diferença andar por um ambiente que foi
habitado pelo próprio artista, mesmo que na maior parte dos espaços hoje se perceba
um “arranjo” artificial, criado para expor os objetos, e não mais para
desfrutar deles. Na verdade, o único aposento que parece ter sido realmente
mantido, em composição e atmosfera, é o estúdio onde Frida pintava. Uma placa
na parede confirma o pressentimento: todos os móveis, com estantes de livros,
cavalete, espelho, estão ali exatamente como no passado. Vemos os pincéis e as
tintas (guardadas em frascos de perfume), tudo paralisado numa expectativa
inútil – e a cadeira de rodas, um corpete que Frida usou, depois de várias
cirurgias... O ateliê vibra de luz e dor, com janelas abertas para o jardim.
A essa altura do
percurso, passamos pelos quadros e desenhos famosos, vimos a lareira que Diego
Rivera mandou construir para a sala principal e descobrimos um acervo de
ex-votos pintados em chapas de alumínio, que se mandava fazer pelo alcance de
uma graça. Frida colecionava essas relíquias de arte popular, assim como também
guardava inúmeras bonecas numa escrivaninha. Cada quarto estava repleto de
gente, turistas lentos e silenciosos, provavelmente tão impressionados quanto
eu. Porque é quase um ato profano, ingressar na intimidade doméstica de quem se
admira e não se conhece – ainda mais em outra época, póstuma. Frida não tem
como fechar as portas, defender-se do olhar invasivo de estranhos que sondam
sua existência talentosa e trágica. Sua presença ronda os objetos que lhe
sobreviveram, está fragmentada na memória de todas estas peças – mas ao mesmo
tempo se distorce, com a lojinha de souvenirs e a escultura dela e Diego
como esqueletos, num senso de humor bizarro. São as exigências do turismo,
dirão alguns, e eu não posso negar. Estes elementos lembram que a Casa Azul,
afinal, não é mais uma casa...
Talvez o verdadeiro
refúgio de Frida, o núcleo onde ela ainda se mantém discreta e preservada,
esteja no último quarto. Em meio à mobília e tantos acessórios de decoração,
sobre uma mesa está sua urna funerária, em formato de sapo. Os antigos mexicas acreditavam que este animal tinha
comunicação direta com o inframundo, por sua capacidade anfíbia – mas há outra explicação
válida. Diego Rivera, marido de Frida, também era conhecido pelo apelido de sapo,
por sua aparência gorda, de olhos saltados. Para as cinzas de uma mulher que
viveu sempre desconfortável no próprio corpo, não pode haver descanso melhor que
uma urna no formato do homem que ela amava.
Tércia
Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
* Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site respectivo.
sábado, 11 de agosto de 2012
Tércia na África - texto de José Castello
Amigos, ontem saiu no jornal O Globo, na coluna do crítico José Castello, este artigo sobre o meu livro O tempo em estado sólido. Confiram clicando em cima do anexo, para ampliá-lo.
quinta-feira, 9 de agosto de 2012
O fuzil de caça
Quando estou às voltas com uma obra japonesa, tenho sempre a sensação de uma atmosfera frágil, cheia de silêncio e contenção. É assim com qualquer livro do Akugatawa ou do Kawabata - para citar só dois dos mais famosos - e agora adiciono Yasushi Inoue à lista dos meus tímidos e profundos mestres do Japão. O fuzil de caça, na belíssima edição da Liberdade, traz uma história tão simples quanto emocionante, no ritmo sagrado que o ocidente nunca alcança. É uma obra para ler e contemplar; só se pode apreciá-la em goles curtos e atentos, que combinem com sua pretensão delicada.
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
Tworki
Terminei ontem o poético e perturbador Tworki, do Marek Bienczyk, que traz o subtítulo de El manicomio, na edição espanhola que tenho comigo. É surpreendente que ainda se encontrem novas formas de falar de um mesmo acontecimento - no caso, a tragédia polonesa (uma de suas tantas) frente ao nazismo. Marek inova ao concentrar a história no amor entre dois jovens, trabalhadores do hospício Tworki: Jerzy e Sonia passeiam de maneira quase lúdica pela atmosfera pesada de guerra, até que esta finalmente os atinge, com um paroxismo que não larga a subjetividade, apesar de uma guerra ser sempre coletiva. A opção estética deste livro é a marca que o faz inesquecível. Ao contrário do que pensam (e proclamam) certos midiáticos que não conseguem ir além da frase óbvia e massificante, o estilo em literatura é tudo; se algo pode virar acessório, é o conteúdo, não a linguagem.
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
O lugar dos deuses
O
LUGAR DOS DEUSES
Atraída pelas palavras
mágicas, tomei o caminho de Ecatelpec, para chegar a Teotihuacán. O México me
ensinou que a arqueologia é uma prática de encantos: restaura o passado para
ativar um tempo impossível, visível muito além da pedra, dos artefatos ou
registros concretos. Esse tempo se consolida nas histórias, nos mitos que
justificam as vidas e paixões dos povos.
Pois ali estava eu, num
pedaço da Mesoamérica, entre suas pirâmides reconstruídas. Tentava escapar dos
ambulantes que vendiam colares, flautas ou estatuetas em obsidiana, sentindo-me
tão deslocada quanto qualquer turista em solo sagrado. Eu me concentrava nas
narrativas, apesar de toda a agitação comercial – e houve um momento em que
pensei ver, nos resquícios milenares daquela arquitetura, a justificativa para
o nome: “lugar onde os homens se tornam deuses” – Teotihuacán, na língua náuatle.
Nesse idioma xamânico,
também foi batizada uma raça de cães negros, com jeito de escultura. Os
xoloitzcuintles, conforme a lenda, ajudavam seus donos a fazer a passagem para
o além – daí o seu nome derivar da palavra “xolotl”, que indica o deus da
morte. Vi alguns destes belos animais nos jardins do museu Dolores Olmedo.
Lola, como era mais conhecida, foi uma grande mecenas da arte mexicana, e hoje
sua casa guarda a maior coleção de quadros do Diego Rivera, que, aliás, criava
xoloitzcuintles...
E por falar em pintores
e museus, o México nesse ponto se torna um país para o êxtase. Além do Rivera,
hiperbólico nos murais do Palácio Nacional e do Palácio de Belas Artes, temos
Frida Kahlo, Nahui Olin e Remedios Varo, temos Orozco e Roberto Montenegro –
sem contar as exposições internacionais, presentes em muitos espaços. Na
literatura, pode-se lembrar Juan Rulfo e Carlos Fuentes, B.Traven e Octavio Paz,
fora tantos outros artistas que não caberiam nesta crônica, ainda que ela se
transformasse numa simples lista. Mas o México tem muito mais. A criação dos
deuses palpita em sua atmosfera, nas ruas em que se apresentam músicos e dançarinos;
no rosto de seus habitantes, que repetem feições ancestrais. Pelo metrô, passam
dois milhões de pessoas por dia – e a maioria delas tem cabelo liso e olhos
rasgados, um sorriso asteca.
Em Teotihuacán, eu compreendi
a síntese de uma cultura quando, em meio ao passeio, como que para quebrar o
sol inclemente sobre as pedras, caiu um verdadeiro dilúvio. Tudo aconteceu de
modo tão repentino e brusco, que parecia um efeito cênico, descontrolado (a
natureza se torna verossímil quando manda avisos, pequenas doses de desastre).
Sem maneira de se
abrigar, as pessoas corriam em muitas direções. Algumas procuravam um teto
inexistente, um toldo anexo às pirâmides. Como boa cearense, eu me alegrei com
a água e fiz uma reverência a Tláloc, deus da chuva. Não foi dessa vez que ele
exigiu sacrifícios, felizmente – e eu deixei o México no dia seguinte, com a
alma vibrando de emoção.
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no endereço http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/08/01/noticiasjornalopiniao,2889793/o-lugar-dos-deuses.shtml)
Abaixo, foto da imagem de Tláloc, diretamente do Museu de Antropologia do México:
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