Amigos,
Logo, logo chegará às livrarias a antologia 50 versões de amor e prazer, organizada por Rinaldo de Fernandes e publicada pela Geração Editorial. São contos eróticos escritos por 13 autoras brasileiras (eu e Ana Miranda somos as "representantes cearenses"). No início, para mim foi complicado superar a timidez diante de certos temas e palavras, para me dedicar às quatro histórias picantes que aqui estão publicadas. Durante um tempo, passei por hesitações, até me lembrar: arte é território de liberdade e sempre existe uma maneira interessante de tratar qualquer assunto, mesmo aqueles que à primeira vista inspiram tabu.
O resultado dessa experiência foi libertador; creio que ainda farei várias outras narrativas na mesma linha, nem que seja por um simples exercício literário...
LIVROS E BICHOS
Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
sábado, 27 de outubro de 2012
Semiótica para a vida
Trecho de Raúl Dorra em posfácio à edição de Da imperfeição, de Greimas:
"(...) o projeto da semiótica é - deveria ser - nada menos do que mudar a vida, ensinar aos homens, se não uma grande sabedoria, pelo menos um conjunto de pequenas astúcias - pequenas escapatórias que permitissem à beleza, inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia. A semiótica, segundo Greimas, estaria envolvida nesta utopia: fazer da pequenez cotidiana uma batalha silenciosa pela beleza, recuperá-la no mundo. (...) A arte, então, nos é necessária a cada minuto, e a semiótica também: aquela porque é o que pode formar a beleza diante dos nossos olhos maltratados pela feiúra, e esta porque é a que pode 'ressemantizar a vida', entregando-nos deste modo as chaves da beleza." (pp.122-3)
"(...) o projeto da semiótica é - deveria ser - nada menos do que mudar a vida, ensinar aos homens, se não uma grande sabedoria, pelo menos um conjunto de pequenas astúcias - pequenas escapatórias que permitissem à beleza, inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia. A semiótica, segundo Greimas, estaria envolvida nesta utopia: fazer da pequenez cotidiana uma batalha silenciosa pela beleza, recuperá-la no mundo. (...) A arte, então, nos é necessária a cada minuto, e a semiótica também: aquela porque é o que pode formar a beleza diante dos nossos olhos maltratados pela feiúra, e esta porque é a que pode 'ressemantizar a vida', entregando-nos deste modo as chaves da beleza." (pp.122-3)
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
Meu destino exótico
MEU
DESTINO EXÓTICO
Funcionou assim:
durante seis meses, fiz circular pela internet uma carta-convite, propondo às
pessoas que me contassem um destino exótico que tivessem adotado – e isso poderia
significar uma simples expedição ou todo um estilo de vida, com as
consequências imagináveis. Como tudo o que é virtual escapa ao controle, essa
proposta ganhou mundo e acabei recebendo mensagens de gente que nunca vi. Aqui
vão alguns desses relatos, com nomes fictícios, para não ferir sensibilidades.
Siptsbergen é uma ilha
ártica pertencente ao território norueguês, uma das poucas habitadas, no
arquipélago das Svalbard. Para ali viajou a artista plástica Mimi Al Xantz, e
não somente para ver de perto os fiordes e geleiras. Ela tinha o objetivo de
esculpir figuras abstratas no permafrost, embora suas intervenções quase não se
distinguissem das imagens naturalmente criadas ali. Entretanto, Mimi ganhara
uma bolsa de pesquisa internacional com esse projeto, e ela teria levado a cabo
sua experiência, se não tivesse ficado traumatizada após a perseguição de uma
raposa-polar. Mimi fugiu do bicho e da própria Siptsbergen, para nunca mais
voltar.
Destino exótico (e
permanente) teve o desempregado Asdrúbal Havin, que depois de uma epifania
largou a família e assumiu um comportamento messiânico. Seu grande desejo era
pegar um trem para Astápovo, a estação ferroviária onde morreu Tolstói. Não sei
se ele economizou o suficiente para chegar à Rússia, mas faz um bom tempo que
desapareceu e já não manda notícias.
Ambição menor, porém
igualmente esquisita, foi a do engenheiro aposentado J. P. Freitas, que
investiu todas as finanças que possuía na construção de um gabinete de figuras
de ceras. Dizem que o local é bem organizado: as figuras, todas de políticos
brasileiros, são verossímeis e até assustadoras. Entretanto, o gabinete vive às
moscas, porque os habitantes de Caracaraí, onde ele foi instalado, jamais o
visitam.
No âmbito do esporte,
há muitas histórias de proezas – mas creio que me enviaram somente as inúteis,
mostrando indivíduos engajados num treinamento descomunal para se tornarem os bilionésimos
a bater determinado recorde. Um exemplo disso está em Patrick, jovem cearense
que encontrou sua maior pretensão atlética na escalada do monte Kosciuszko, na
Austrália. Seus amigos o advertiram de que qualquer aborígene fazia aquilo com um
pé nas costas, mas Patrick chamou a todos de invejosos. Enfrentou dietas,
exercícios e uma viagem longuíssima: rompeu um tendão do tornozelo nos 200
metros iniciais de subida e, de tão humilhado, virou clandestino, sem coragem
de voltar para o Brasil.
Recebi outros relatos
que também merecem entrar numa página; são inspiradores – nem que seja para a
gente ficar quieta e satisfeita com o destino que Deus nos deu. Quem sabe na
próxima quinzena eu volte a esse tema... Até lá, continuem enviando suas
histórias!
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
sábado, 20 de outubro de 2012
Bertazzon & Bernardelli
Para se embevecer: duas esculturas do Museu de Belas Artes do RJ. Esta é um Angelus, de 1933, criação de Hugo Bertazzon (vale a pena também muitíssimo ver sua Pietà, na Pinacoteca de SP):
A obra de baixo é uma Moema, de Rodolfo Bernardelli. A história desses três irmãos artistas, Félix, Rodolfo e Henrique, é fascinante, e vale a pena pesquisá-la. Por enquanto, fiquemos com essa escultura, que mostra uma índia submersa e, ao mesmo tempo, mostra a arte nascendo de sua matéria - algo parecido com aquelas esculturas inacabadas de Michelangelo...
A obra de baixo é uma Moema, de Rodolfo Bernardelli. A história desses três irmãos artistas, Félix, Rodolfo e Henrique, é fascinante, e vale a pena pesquisá-la. Por enquanto, fiquemos com essa escultura, que mostra uma índia submersa e, ao mesmo tempo, mostra a arte nascendo de sua matéria - algo parecido com aquelas esculturas inacabadas de Michelangelo...
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
Dia dos professores
A mensagem na lousa, em polonês, diz: "O gato sabe melhor" (rs). De fato, para quem fica atento, os felinos são grandes sábios e professores - embora um tantinho esnobes...
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Os enamoramentos
Trecho da pág.288:
"Miguel não fazia muitas objeções a morrer, se é que se pode dizer isso, compreenda, de alguém a ponto de completar cinquenta anos e que tinha uma vida boa, com filhos pequenos e uma mulher que amava, quer dizer, sim, da qual estava enamorado, sim. Claro que era uma tragédia, como seria para qualquer um. Mas ele sempre esteve muito consciente de que se estamos aqui é por uma inverossímil conjunção de acasos e que não se pode protestar contra o seu fim. As pessoas acreditam que têm direito à vida. Mais até, as religiões e as leis de quase todos os lugares, quando não as Constituições, acolhem essa ideia, e no entanto ela não via as coisas desse jeito. Como é que a gente vai ter direito ao que não construiu nem ganhou? costumava dizer. Ninguém pode se queixar de não ter nascido, ou de não ter estado antes no mundo, ou de não ter estado sempre, logo por que alguém podia se queixar de morrer, ou de não estar depois no mundo, ou de não permanecer sempre nele? Uma coisa lhe parecia tão absurda quanto a outra. Ninguém faz objeções à sua data de nascimento, logo não teria por que fazer à da sua morte, igualmente devida a um acaso."
"Miguel não fazia muitas objeções a morrer, se é que se pode dizer isso, compreenda, de alguém a ponto de completar cinquenta anos e que tinha uma vida boa, com filhos pequenos e uma mulher que amava, quer dizer, sim, da qual estava enamorado, sim. Claro que era uma tragédia, como seria para qualquer um. Mas ele sempre esteve muito consciente de que se estamos aqui é por uma inverossímil conjunção de acasos e que não se pode protestar contra o seu fim. As pessoas acreditam que têm direito à vida. Mais até, as religiões e as leis de quase todos os lugares, quando não as Constituições, acolhem essa ideia, e no entanto ela não via as coisas desse jeito. Como é que a gente vai ter direito ao que não construiu nem ganhou? costumava dizer. Ninguém pode se queixar de não ter nascido, ou de não ter estado antes no mundo, ou de não ter estado sempre, logo por que alguém podia se queixar de morrer, ou de não estar depois no mundo, ou de não permanecer sempre nele? Uma coisa lhe parecia tão absurda quanto a outra. Ninguém faz objeções à sua data de nascimento, logo não teria por que fazer à da sua morte, igualmente devida a um acaso."
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Javier, Javier
Estou acabando de ler Os enamoramentos, do Javier Marías. Fiz uma pausa nos russos porque não resisti a esse romance do autor que, para mim, é o que há de melhor na prosa em língua espanhola da atualidade. Entretanto, devo dizer que o livro me decepcionou um pouco. Estava acostumada à qualidade de obras como Quando fui mortal, Coração tão branco e Amanhã, na batalha, pensa em mim - histórias que sempre me faziam sair de sua experiência com aquele embevecimento de admiração pelo arranjo, pelas soluções narrativas e, sobretudo, pela capacidade reflexiva. Este último ponto talvez seja o único que permanece íntegro n'Os enamoramentos, e afinal é o que nos faz reconhecer o estilo de Javier Marías, que tem esse hábito de paralisar a ação para fazer incursões digressivas interessantes - no que lembra, às vezes, José Saramago e Villa-Matas (embora este tenha certa desvantagem estética). No restante, porém, o romance não me convence. Tive a sensação de que o início, quando a protagonista se apresenta como funcionária de uma editora e passa a descrever os autores como caricaturas maníacas, nada mais é do que uma espécie de vingança ou recado do escritor para os seus pares. Não que eles não mereçam a crítica, mas achei que ela entrou de maneira forçada, no livro. Além disso, existe o grave problema de que as vozes da narrativa são todas iguais; personagens os mais diversos caem em reflexões idênticas, usando as mesmas palavras, inclusive. Essa "preguiça" de especificar os temperamentos das figuras literárias acaba explicitando demais o próprio autor, e talvez não por acaso um dos personagens se chame Javier, e a protagonista, Maria. Conhecendo os outros livros deste espanhol, sei que a presença autobiográfica faz parte de seus enredos (e isso, aliás, nunca foi um defeito). Mas a monofonia desse romance não me parece uma estratégia e, sim, uma carência.
Ainda tenho por ler, em minhas estantes, a trilogia Teu rosto amanhã. Espero que ela me resgate um antigo Javier Marías, mais cuidadoso com suas estruturas literárias.
Ainda tenho por ler, em minhas estantes, a trilogia Teu rosto amanhã. Espero que ela me resgate um antigo Javier Marías, mais cuidadoso com suas estruturas literárias.
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
Crônica do Rio
CRÔNICA
DO RIO
No
caminho de volta para Fortaleza, soube que não tinha aproveitado um décimo do
que a cidade podia oferecer. O tempo escasso cortou minhas programações
impiedosamente, e assim eu deixei o Corcovado, a Academia Brasileira de Letras,
o Theatro Nacional, a Quinta da Boa Vista e o Zoológico para outra vez.
Passeios pela Lapa, por Santa Teresa, Leblon ou Laranjeiras também entraram na
lista futura – mas o pior foi saber que, por um medonho erro de comunicação,
não vi o amigo Silvestre, chegado ao Rio de última hora, para um encontro com
Oscar Niemeyer! Amaldiçoei todas as companhias telefônicas do país e pus-me a
refletir sobre o que, afinal, eu tinha feito nessa primeira estada no Rio de
Janeiro.
Já no voo de ida
começou a aventura, quando uma comissária de bordo sofreu assustadoras crises
de labirintite ao servir as refeições. Mais tarde, eu tentaria compensar aquele
sanduíche com um jantar no Lamas, point intelectual
desde o século XIX. Na categoria de bares históricos, no dia seguinte conferi o
Amarelinho, em frente à Biblioteca Nacional, e reparei que os seus garçons
pareciam todos sofrer de um certo grau de icterícia. Mas nada se compara ao
restaurante A Polonesa (experimente gołąbki ao
som de Chopin e diante de uma foto do Castelo de Wawel) ou à Confeitaria
Colombo (onde devemos saborear profiteroles – a sobremesa favorita de Rui
Barbosa).
Consegui
visitar a Biblioteca e o Museu de Belas Artes, com sua impressionante coleção.
E vi uma peça com Luís Melo, a excelente “Ausência”, no Sesc Ginástico.
Entretanto, para que não digam que só me interesso por comida e arte, confesso
que suspirei diante da paisagem. Posei para fotos em praias, calçadas e morros.
Em Copacabana, encontrei um “artista da areia” prodigioso, embora
excessivamente eclético: ao lado de palmeiras e cristos redentores, ele
esculpia um rosto muito parecido com o de Rubem Fonseca... No Jardim Botânico,
tive os maiores encantos – além das orquídeas e bromélias, vi a exuberante
sumaúma, árvore de Tom Jobim. Bem perto do chafariz, ainda havia o curioso tronco
oco onde D. João VI se escondia, sempre que tinha pesadelos com Napoleão.
Mas
talvez o passeio para Niterói, rumo ao Museu de Arte Contemporânea, tenha sido
o mais intrigante, pela tábua de restrições fixada na balsa. “Proibido cantar e
fazer pregações religiosas” e “proibido jogar pôquer dentro do navio” eram
exemplos do caráter carioca? Preferi achar que não – e também olhei para o
outro lado, ignorando as manchas de óleo na Baía da Guanabara. No último dia de
viagem, eu já não veria muita coisa, literalmente. Um pombo roubou os meus
óculos, no Largo do São Francisco; saiu voando com a armação entre as garras, e
por pouco não fiquei caolha como a estátua de Camões bem pertinho dali, no Real
Gabinete Português de Leitura. Voltei míope e arranhada, mas decidida a retornar.
O Rio de Janeiro merece novos roteiros e emoções, e estarei preparada!
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
terça-feira, 9 de outubro de 2012
Eleiçõe$
Fotografei estes grafites no Largo da Carioca, algumas semanas atrás. Agora, eles me parecem mais apropriados do que qualquer consideração sobre os resultados eleitorai$...Como é aquela frase? Se correr, o bicho pega; se ficar...
domingo, 7 de outubro de 2012
As afinidades eletivas, por Urik Paiva
As afinidades eletivas
por Urik Paiva
Os
gritos dos galos partidários rasgam a manhã para advertir: estamos
em período eleitoral. As militâncias soam militares no fazer
levantar da cama e pôr o mau humor na rua para ouvir aqueles
jingles, os quais acredito terem sido compostos por
alguém como Tom Jobim; receber panfletos com a bela cara de
políticos que mais poderiam ser concorrentes a Mister Suécia; ser
quase fatalmente atravessado por uma carreata ou bicicleata em que os
condutores são pessoas tão felizes que é de se acreditar que
tenham experimentado todo o Kama Sutra antes de sair de casa; ser
abduzido nas esquinas por bandeiras gigantes que ficariam frouxas
enrolando a Catedral; ter os tímpanos sodomizados por discursos
megafônicos que deixariam Beethoven ainda mais surdo, ele que era
completamente surdo; e escutar um sem tamanho absurdo de promessas
que talvez envolvam a devolução do Paraíso a Adão e Eva.
Dois
amigos votam em candidatos diferentes: perseguem-se pelas ruas
empunhando peixeiras; quebram os dentes um do outro com exemplares
d’O Príncipe, de Maquiavel. Marido e mulher possuem
divergências políticas: cerceiam-se de contato íntimo enquanto não
chegam a um denominador eleitoral comum; praguejam-se de Margaret
Thatcher e Karl Marx dependendo de como analisam o excedente de
produção.
Loirinha
fritada pelo sol, Fortaleza está aquartelada pelo que há de mais
dantesco na democracia. Nós, os misantropos políticos, que sempre
votamos nulo para rainha do colégio e hoje não sabemos quem são os
síndicos de nossos próprios prédios, sofremos o bullying de
outubro - esse, sim, o mais cruel dos meses – que se aproxima.
Busco
uma evasão possível diante das agruras de um tempo que poderia ser
belo em vez de bélico. Ainda há rei em Pasárgada? Porque se houver
prefeito, há também campanha e não será possível escapar do
perturbador bochincho eleitoral.
A
solução para meu ranço vem no correr de um exercício à la
realismo fantástico. Dentro da biblioteca, o mais prolífico dos
refúgios, sou o (e)leitor que recruta seu rol de afins. Tire o seu
título de eleitor do caminho que eu quero passar com meu relicário
ficcional.
A
overture de um intrigante fenômeno mental se dá quando penso
em Iracema, signo literário de nossa terra, oferecendo-se à
governança da capital cearense. O Partido Tabajara poderia, caso
deixe de lado as desavenças políticas, se unir a toda a nação
Tupi e conseguir bastante tempo de televisão para o horário
eleitoral. Os mais conservadores não vão aprovar a inclinação da
virgem à liberação do consumo de alucinógenos, como o Segredo da
Jurema. Enquanto os mais liberais considerarão um retrocesso a
militarização da Guarda Municipal com arco e flecha.
A
figura da personagem de José de Alencar se desfaz em minha mente,
dando lugar ao discurso inflamado de uma Maria Moura sob o sol da
Praça do Ferreira a instigar toda a sorte de mulheres a um levante
feminista derradeiro, para aflição do eleitorado masculino. Para
deixar a chapa um tanto mais polida, mas sem perder o caráter
enfático, o arranjo partidário poderia incluir a Capitu de Machado
de Assis, sendo a dissimulação dos olhos de ressaca um fenômeno
não raro na política. A mulher de Bentinho, através da condição
do esposo, poderia alavancar muitos votos naquela região populosa do
José Walter, cujos chavelhos dos homens são vigorosos indicativos
de um determinado status quo.
De
Machado, ainda cabe considerar, para nosso inusitado pleito, Simão
Bacamarte, defensor pétreo do equilíbrio e da normalidade. Entre
suas propostas, a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPES), variando-os tematicamente: o CAPES para os perigosamente
descuidados, para os excessivamente gulosos, para compulsivos
sexuais, para leitores de Paulo Coelho, para pretendentes a
ascensoristas etc.
Retrocedendo
aos primórdios do cânone literário ocidental, temos, do Partido
Homérico, o heroico Odisseu, que promete construir faixas de
trânsito exclusivas para quem está voltando de Ítaca e acabar com
o problema da superlotação do transporte público com enormes
cavalos de madeira que comportariam toda a massa produtiva. Não
teríamos o Cavalo de Tróia, e sim o Cavalo do Mucuripe, o Cavalo do
Bom Jardim, o Cavalo da Serrinha etc.
Um
mau candidato seria o sanguinário príncipe Hamlet, que nem numa
surpreendente conversão ao republicanismo poderia dar certo como
nosso alcaide, haja a quantidade de interesses pessoais que arrolaria
à máquina administrativa. O que daria muito sentindo à afirmação:
Há algo de podre no Município de Fortaleza. Mas não restam dúvidas
de que Horácio, sempre lúcido, pudesse ocupar com louvor alguma
secretaria.
Também
não seria acerto da cidade eleger Pinóquio como prefeito. Além de
imaturo e ambicioso, este cara de pau possui uma nociva
apetência ao embuste. Talvez mentisse tanto que seu nariz crescesse
do Paço Municipal ao Terminal do Siqueira.
O
caso Lewis Carrol é intrigante. Se por um lado há a débil e
inexperiente Alice, boa de coração, mas cujo programa de governo é
o mais fora da realidade possível, apresentando uma cidade
inexequível, tem-se por outro o Coelho Branco, cuja promessa de
terminar todas as obras no tempo certo soaria agradável ao eleitor
alencarino.
Compondo
a lista dos candidatos mais sérios e comprometidos, há o
surpreendente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de
Corbentraz e Sura, mais conhecido como O Cavaleiro Inexistente, que,
segundo o romance de Italo Calvino, era o mais austero dos paladinos
de Carlos Magno. Sua característica marcante é que, dentro da
deslumbrante armadura branca, ele simplesmente não existe. Trocando
o metal da armadura pelo linho do burocrático paletó, o nosso
Prefeito Inexistente faria uma gestão de visível competência
fiscal, digna do panteão de honra do Portal da Transparência.
Literalmente.
Do
Novo Testamento para as urnas de nossa capital. Jesus Cristo é de
longe o campeão das promessas miraculosas. Caro eleitor, cara
eleitora, este homem não vai transformar a rua da sua comunidade na
Champs-Élysées, não vai despoluir o canal do
seu bairro andando por cima das águas, não vai liberar espaço no
São João Batista ressuscitando os mortos, não vai multiplicar seu
mercantil, não vai dobrar
sua cerveja no bar. Este homem, assim seja, talvez nem passe das
prévias com Barrabás.
Bem
à esquerda do espectro político, Oliver Twist garante governar para
os miseráveis, ampliando o acesso a programa de inclusão social, o
que deixará a classe média da Regional II um tanto descontente.
Além disso, seu primeiro escalão seria todo composto por outros
órfãos de Dickens.
À
deriva em pensamentos surreais, imagino um jovem Werther que,
abismado com o déficit público, cometeria suicídio nos primeiros
dias de mandato. Mil e uma propostas para sobreviver em Fortaleza,
este poderia ser o programa de governo de Sherazade. O Pequeno
Príncipe, aparentemente ingênuo e pueril, talvez seja na verdade um
corrupto, fazendo valer a máxima “O essencial é invisível à
prestação de contas”. Caso chegasse à chefia do Executivo, o
autocomplacente Leopold Bloom criaria mais um feriado municipal, o
Bloomsday, em 16 de junho. Hannibal Lecter promete acabar com o
problema da fome em Fortaleza. E, seja lá qual for o resultado das
eleições, Emma Bovary implora a nomeação do Doutor Charles, seu
marido, como plantonista do IJF, deixando-o pouquíssimo tempo em
casa.
Agradando
a todas as classes sociais, a Mulher do Médico, aquela que
permaneceu enxergando diante da terrível epidemia de cegueira
relatada por José Saramago, pode ser a grande surpresa destas
eleições. Mantendo-se lúcida em meio à aflição coletiva, ela
prestou-se, como servidora empossada pelas circunstâncias, a guiar
os cegos pelos dissabores de um mundo autoconfinado. Mas nós não
somos cegos, retrucariam os opositores da candidatura, que teriam
apenas um constrangedor silêncio como réplica.
Chegamos
ao fim do conclave fictício com a condenação a candidato do
desavisado Joseph K., o bancário que, em O Processo, é
acusado de cometer um crime a ele desconhecido. O personagem talvez
expressasse o mesmo assombro ao ser avisado de que foi repentinamente
declarado, por ampla maioria democrática, prefeito da cidade, sem
nem mesmo saber que estava concorrendo. A democracia tem
dessas arbitrariedades.
Curiosamente,
é Kafka quem me retira de minha própria invenção, antes mesmo do
findar do pleito, e me faz retornar a Fortaleza real, mas não menos
absurda que esta outra de dentro do papel. Não seriam essas duas
Fortalezas uma só? No fim das contas literárias, deixo à cidade a
responsabilidade do espetáculo narrativo de contar a si mesma.
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Confiram também no blog do autor, abstrato armado)
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quarta-feira, 3 de outubro de 2012
A musa dos olhos impossíveis
Quando estive na galeria dos pintores brasileiros, no Museu de Belas Artes do Rio, fiquei absolutamente impressionada com a série de quadros do Pedro Américo em que aparece uma mesma figura feminina, de olhos impossíveis. No detalhe da tela acima, ela aparece no papel de Joana D'Arc, e em vários outros quadros assume personagens as mais diversas. Quem teria sido essa modelo que posou para o artista? Será que ela realmente possuía esses olhos anatomicamente absurdos (apesar de belos, ou exóticos)? Como Pedro Américo era muito talentoso, não posso crer que ele tenha "exagerado" ou "errado" a fisionomia dessa mulher, ainda mais quando vemos o seu rosto, idêntico (e até mesmo envelhecendo, conforme a cronologia das pinturas), na série dos quadros ali expostos.
Estou remoendo o mistério dessa identidade... Se alguém tiver qualquer pista, por favor, me ajude!
Estou remoendo o mistério dessa identidade... Se alguém tiver qualquer pista, por favor, me ajude!
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